“Quando as pessoas adoecem de si mesmas, a empatia e o amor são mais relevantes do que qualquer técnica de cura”
Num momento histórico em que
parece que a vocação foi totalmente solapada pela máquina de moer carne do
mercado de profissões; em que os pais parecem não inspirar mais os filhos com suas
obras, escolhas e sabedoria; em que o sucesso
é medido exclusivamente pela riqueza material, muitas vezes em detrimento à qualidade
ou relevância do que se faz para obtê-la; em que o mérito e esforço pessoal podem
ser absolutamente ultrapassados ou anulados pela política ou compadrismo
perverso; em que fazer rápido é mais desejável do que fazer bem feito; em que o
valor da vida humana se relativiza de acordo com seu significado ideológico e
não por simplesmente ser uma vida humana como qualquer outra; em que a medicina
e a engenharia fundem máquinas, fármacos e técnicas para consertar corpos
através de procedimentos precisos, mas que são cada vez mais incapazes de
gastar algum tempo para conhecer seus pacientes com um pouco mais de
profundidade, através de um interesse genuíno pelo ser que está diante de si;
tempos em que o Dr. House (que tem ojeriza ao contato com pacientes) encanta
muito mais do que os humanos Dr. Kildare ou Dr. Ben Case, de um passado nem tão
distante, jamais sonharam... Enfim, neste momento em que vivemos , penso que
livros como “O Físico” de Noah Gordon, além da satisfação lúdica que
representam, são um excelente contraponto, um marco de reflexão sobre o que
estamos fazendo com nossa civilização.
Noah Gordon é um contador de
histórias, daqueles que tenho valorizado neste espaço desde o início : É
daquele tipo que quando descreve um andarilho cozinhando uma carne em banha de
porco sobre uma fogueira, sentimos o cheiro, vemos seus fumos se desdobrando no
ar , ouvimos a gordura chiar na frigideira e sentimos apetite, vontade de comer
algo impensável se fosse descrito sem o brilhantismo de Gordon. Tenho lido seus
livros ao longo dos anos e me saciado com sua imensa capacidade descritiva e do
humanismo de suas personagens. Embora tenha estudado medicina por um semestre
por insistência paterna, tornou-se jornalista e mais tarde escritor. Além de
exímio contador de histórias, percebe-se em sua literatura a preferência por
temas relacionados à curas, medicina e judaísmo, mas acima de tudo, a cura
através do humanismo, da capacidade de entrega de um humano a outro ser. Das obras que li, O Físico (que faz parte de
uma trilogia que conta ainda com “Xamã” e “A Escolha da Dra. Cole”) se destaca
francamente pela epopéia humanista de Rob Cole, um jovem inglês, em busca de
seu sonho máximo : estudar na melhor escola de medicina do mundo na época
(século XI) que se localizava na Pérsia (hoje Iraque) e comandada por ninguém
menos que Avicena ( Ibn Sina), um dos maiores polímatas do Islã, versado em
múltiplas áreas das ciências e filosofia (estudou e comentou obras greco-romanas,
como Platão e Aristóteles), além de ter produzido vários tratados de medicina. Penso que “O Físico” contém elementos de um
grande romance : uma saga pessoal que envolve amor, drama, batalhas, sofrimento,
busca e superação, além dos componentes históricos que pontuam a trama, jogando
luzes sobre a Idade Média, a “Era de Ouro do Islã”, onde o Oriente era o grande
pólo da ciência e da filosofia, enquanto o Ocidente ainda se debatia entre
guerras, pestes, invasões e suas consequências – a miséria e a fome.
Rob Cole é um menino inglês, filho de família numerosa e paupérrima,
que após a morte dos pais é adotado por um Barbeiro (nome dado aos práticos que
percorriam os povoados e cidades da Europa com suas carroças, oferecendo curas,
elixires, sangrias e toda sorte de procedimentos “protomedicinais”). Logo se
estabelece uma relação de afeto entre os dois e não obstante o Barbeiro ser um
verdadeiro “vendedor de óleo de cobra” e um beberrão , consegue transmitir
muitos conhecimentos práticos ao menino, fazendo-o descobrir em si mesmo uma
capacidade incomum de através do toque, pressentir quando a vida de uma pessoa
estava se esvaindo. Rob torna-se apaixonado pela possibilidade de proporcionar
cura aos males que afligem os enfermos que buscam no Barbeiro o alívio para
seus sofrimentos e percebe que seu toque é um dom que tem algum poder curativo.
Neste ponto o que para alguns pode
parecer um dom místico, a mim parece pura e simplesmente uma profunda empatia e
a sensibilidade de perceber e de transmitir
conforto ao outro através da capacidade de amar e se entregar a um toque,
quando os corpos se tocam, trocam energias e se equilibram. É notório mesmo para qualquer “médico-engenheiro”
, a capacidade de recuperação de um enfermo quando este se encontra amparado psíquica
e afetivamente em comparação aos enfermos abandonados em um leito de hospital. Quanto
ao “toque curativo”, qualquer pessoa que tenha tido a oportunidade de receber
um abraço generoso, receptivo, caloroso e amoroso, sabe o bem estar físico
decorrente deste simples gesto. É uma pena que tais abraços sejam tão raros,
tão mesquinhamente economizados, tão reprimidos, tão negados como se um corpo
só pudesse se entregar a outro se for por motivações sensuais. É uma pena que
seja necessário pagar para que um desconhecido toque nossos corpos em clínicas
de diversas especialidades, quando estes mesmos corpos se cruzam o tempo todo evitando
se tocarem.
Não se trata da crença ( em minha
opinião, ingênua) de que passes corporais, impostação de mãos e conversas curem
doenças graves, tumores e má formações, mas de entender que qualquer
procedimento médico representa apenas 50 % da possível cura, pois somente a
resposta do organismo tratado é que poderá completar este processo e para tanto
o SER que representa este organismo precisa mais do que técnica para querer se
curar.
O nascimento da própria
Psicanálise se deu através da observação de médicos sensíveis o suficiente para
perceberem que seus pacientes demandavam mais do que uma receita ou um exame
clínico : precisavam ser ouvidos, precisavam se sentir acolhidos e muitas vezes
a consulta era curativa por si mesma, sem a necessidade de outros
procedimentos.
Voltando à história de Noah Gordon , Rob, após inúmeras aventuras pela
Europa Medieval acompanhando o Barbeiro, fica sabendo da existência da Escola
de Medicina de Avicena localizada na Pérsia e que só franqueava seu acesso a
judeus. Seu desejo de aprender com o maior mestre da medicina da época e de
poder curar as pessoas o faz sonhar com a possibilidade de cursar a escola,
apesar dos evidentes e aparentemente intransponíveis empecilhos : ele era
Inglês, cristão, pobre e vivendo a milhares de quilômetros de distância de seu
sonho. Rob empreende então uma fabulosa aventura na busca deste sonho, na qual
sua determinação irá ser testada muito além dos limites. Sua viagem rumo à
Pérsia é marcada por todo o tipo de percalço, obrigando-o a se desdobrar para
continuar vivo e firme em seu objetivo, ao mesmo tempo que conhece o amor, o
acolhimento e a bondade daqueles com quem é obrigado a cruzar pelo caminho. Durante
seu imponderável e longo percurso, assumiu uma identidade falsa como se fosse
um aluno judeu e aprendeu todas as peculiaridades do Judaísmo, seus rituais,
símbolos e significados para estar apto a ser admitido na escola, quando lá
chegasse.
Aqui, Noah Gordon desfralda as
velas de seu poder descritivo e nos leva a uma viagem fascinante por entre os
costumes do povo judeu e do Oriente antigo e constrói uma personagem cujo amor
e disponibilidade de ajudar o outro só é equiparado com sua força de superação
na busca de um sonho praticamente impossível à maioria dos mortais. Rob Cole não partiu para enfrentar o mundo desconhecido
e hostil em busca de fortuna ou de fama, mas para buscar o conhecimento que lhe
faltava para ser um bom “Physician”, ou seja, um bom médico. Não obstante tivesse “um dom”,
sabia em seu íntimo que este só poderia ser realmente útil se associado ao
conhecimento cujo acesso lhe cobraria um árduo preço.
Gordon costura bem a história e
nos dá um final bastante satisfatório, sem estardalhaços, sem grandes
apoteoses, coerente com o humanismo de sua personagem principal.