Escrever sobre "Quando Nietzsche Chorou", trouxe-me os velhos questionamentos da marreta do filósofo, presente em sua obra, que tive o prazer de desfrutar ainda na juventude. Lembrei-me de duas idéias de Nietzsche que sempre me perturbaram : a do abismo e a do eterno retorno. Resolvi dedicar este post como uma extensão daquele último sobre o tema, muito mais como uma reflexão despretensiosa, fruto de uma experiência própria contemplando o fundo do abismo. Nietzsche não diz apenas “olhar para dentro do abismo”, mas “olhar demoradamente para dentro do abismo”, ou seja olhar o tempo suficiente para que nossos sentidos se quedem diante da inutilidade de tentar divisar e referenciar o nada. Frente à cessação da busca do referencial externo, nos tornamos o próprio abismo, cuja visão retorna no sentido oposto, livre dos ruídos dos sentidos, para nos darmos conta daquilo que habita nosso interior : não as coisas conscientes, que estão disponíveis a um simples chamado da memória, nem aquelas das quais nem sequer suspeitamos da presença a maior parte do tempo, mas daquilo que ainda as antecede, uma não linguagem, uma harmonia com o não ser.
Ao olharmos demoradamente para dentro de um abismo, deparamo-nos com o nada, com o rompimento da gestalt que permite nossas percepções : não temos mais uma figura e o fundo nos engole, se apossa de nosso entorno para em seguida invadir-nos até a alma. Depois de remoer um pouco esta ideia, cheguei a um pensamento derivado que é “ A consciência é o ponto de estrangulamento de um único abismo”.
O estrangulamento advém pois desta injunção que nos dá ilusão de um limite real de algo que é contínuo. Este estrangulamento é temporário, leva o tempo de uma vida, antes do retorno ao contínuo, àquilo que não tem limite nem presença. Este olhar para dentro de si começa como numa espiral, onde primeiro tentamos entender, dar significado, para lentamente ir perdendo completamente os referenciais lingüísticos, simbólicos, ficando expostos a um sentir sem palavras, sem imagens sem conceitos. Não conseguimos pensar o impensável e sem uma linguagem que nos faça sentido, que tenha significado, encontramos o nada absoluto. Estamos irremediavelmente presos aos limites de nossa linguagem e o que possa haver além dela, para nós se apresenta apenas como o nada. Talvez este seja o princípio do Eterno Retorno de Nietzsche : Encontramo-nos no nó de uma ampulheta, que é nossa consciência, condenados a assistir a passagem dos mesmos grãos de areia (aquilo que nossa linguagem pode significar) de um lado para outro da ampulheta, sem jamais podermos divisar o que há fora da ampulheta, que apenas intuímos (mas só conseguimos imaginar como se também fossem outros arranjos de grãos semelhantes aos grãos de areia disponíveis na ampulheta).
Se demorarmos o tempo suficiente olhando para o fundo do abismo, o sentir conhecido, os ecos corporais vão se tornando distantes, abrindo espaço para sentires cada vez mais estranhos, como se estivéssemos nos projetando no vazio... o mesmo vazio sem referencial que insistíamos em tentar divisar no fundo sem fundo do abismo.
É como se de alguma forma, retornássemos ao ponto de partida. Um ponto de partida que é tão de partida quanto é de chegada, portanto um contínuo... Um plano contínuo onde a única coisa que se interpõe entre o dentro e fora é a nossa consciência, nossa noção de corpo físico contemplante. A sensação decorrente pode ser chamada de "sentido de presença", numinosidade ou qualquer outro nome que se queira dar, inclusive pura e simplesmente "consciência". Parece-me que o limite de nossa consciência está vinculado ao quão estrangulado é este ponto onde moram nossas percepções : se for por demais apertado, perdemos a conexão com aquilo que somos, interrompemos o simples fluxo do fora e dentro, vendo-os como coisas absolutamente separadas. Se por outro lado, for por demais frouxo, nos aproximamos dos ascetas que buscam o Nirvana e perdemos igualmente a conexão com qualquer coisa que tenha significado. Sobre esta busca dos ascetas... penso que há uma pressa injustificada : o rompimento de nosso elo de consciência é líquido e certo. É apenas uma questão de tempo. Talvez devêssemos apreciar e conhecer os grãos de areia de nossa ampulheta, sabendo que são os mesmos, de um lado e de outro e que basta estarmos atentos para vê-los passar diante de nossos olhos.