“Vivo mais num ano que os comuns mortais em dez” - Joe Gould ao comentar sobre aparentar mais idade do que de fato tinha.
Houve tempos em que a condição de “morador de rua” não era pandêmica como é hoje e algumas figuras se destacavam nos cenários das cidades : mendigos velhos ou jovens, alguns sábios e lúcidos do jeito deles, outros embriagados e assustadores povoavam o imaginário popular. Alguns tornavam-se personagens de alguma lenda urbana e tinham suas imagens utilizadas pelos pais para pressionarem seus filhos a se comportarem, como o
famoso “homem do saco”. Sempre encarei estes personagens com curiosidade e respeito
carinhoso e me lembro de episódios bizarros que enfrentei ao tentar ajudar
alguns deles, pois não entendia que muitos deles não são “pedintes” e não
aceitam doações de qualquer maneira – é preciso ter jeito, tentar entender a
lógica daquele indivíduo antes de tentar lhe fazer uma doação. Aprendi esta
lição em vários episódios como no dia em que vi um deles fuçando num saco de
lixo de fronte a uma padaria. Imediatamente entrei na padaria e comprei uma
pacote de pão de forma, pois imaginei que ele duraria mais e que o homem
poderia comê-lo ao longo dos dias. Peguei o embrulho e corri para alcançar o
homem que ainda fuçava o lixo, chamei-o e estendi o embrulho em sua direção.
Ele me olhou com um olhar penetrante e um tanto enfezado, e desprezando minha
oferta voltou-se para sua árida busca naquele lixo magro. Fiquei parado, com o
embrulho estendido sem saber o que fazer, com a nítida sensação de que eu o
havia ofendido. Cheguei pensar que o
problema era o pão de forma pois, a seco, é bastante insosso. Sem opções, tive
a ideia de colocar o pacote ao lado de outro saco de lixo, próximo ao que ele
estava mexendo e me retirei. Fiquei de longe observando e depois de algum
tempo, vi com satisfação que ele pegara o embrulho com o pão e guardara em sua
sacola. Mais tarde fui compreender um
pouco melhor a intrincada realidade daqueles que chamamos indistintamente de
moradores de rua e descobri que em muitos casos, tratam-se de pessoas cuja
origem não é de forma alguma miserável e que a maioria já teve uma identidade
social completamente diferente daquela que se apresenta no momento. Por trás de
cada um desses indivíduos, existe um ser humano cujo ego se partiu e desenrola-se
um drama que vai da rejeição familiar, passando pela doença mental culminando com
a falta de estrutura social para absorve-los adequadamente.
Foi então que “conheci” Joe Gould, ou o Professor Gaivota do jornalista
e escritor Joseph Mitchell, que trabalhou por décadas na prestigiada revista
New Yorker. Mitchell, era um escritor diferente, sobretudo por sua capacidade e
paciência de observação, que o fazia buscar temas nada óbvios sobre os quais
escrever. Foi graças a esta peculiaridade que descobriu o personagem Joe Gould,
um andarilho que perambulava pelas ruas de Nova York nos anos quarenta e que
descrevia a si mesmo como “a maior
autoridade dos Estados Unidos em privação” – “Vivo de ar, autoestima, guimba de
cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e ketchup”. Joseph Ferdinand Gould – Joe Gould - era ianque, criado nos subúrbios de Boston,
filho e neto de médicos. Bacharelou-se em Harvard e quando sua mãe achou que se
tornaria médico como seus antepassados, ele declarou que sua educação formal
estava encerrada. Ao ser questionado sobre o que faria de sua vida, respondeu
simplesmente : “ Pretendo perambular e refletir”. É sobre esse nada óbvio personagem que
Mitchell dedicou seus melhores esforços de escritor e jornalista.
Mitchell escreveu na verdade duas
histórias, uma publicada na New Yorker em 1942 – “O Professor Gaivota”, na qual
se referia ao fato de Gould afirmar que conhecia a linguagem das gaivotas e que
estava escrevendo a maior obra de todos os tempos, nada menos do que a “Uma História
Oral do Nosso Tempo” , que segundo ele, na
época em que conheceu Mitchell, já chegava a ser onze vezes maior que a Bíblia.
A segunda história, Mitchell publicou apenas em 1964 – “O Segredo de Joe Gould” –
sete anos após a morte de Gould, em que completa o perfil do idiossincrático
personagem e revela o que de fato aconteceu com ele e com sua obra. O projeto
da “História Oral” de Gould era nada mais nada menos do que o registro daquilo
que ele via e ouvia, sendo que ao menos metade de sua obra, seria a transcrição
literal ou resumida de conversas que ouvia nas ruas, nas praças, nos botecos
que freqüentava. “ O que as pessoas dizem
é história” – afirmava Gould, que desprezava a história oficial como sendo,
em sua maioria, uma grande farsa. “Vou
registrar a história informal de gente em mangas de camisa – o que o povo tem a
declarar sobre seus empregos, amores, comidas, pileques, problemas, tristezas –
ou hei de morrer tentando."
O livro de Mitchell é de fato uma
obra-prima, um mergulho na vida de um ser humano que levou sua vida na
contra-mão daquilo que estava predestinado a viver mas, concomitantemente, senhor
absoluto de seu tempo e de suas idéias. A própria história de Mitchell é
profundamente afetada pela experiência que teve por anos a fio com Gould, atrás
de sua “História Oral” e as revelações que teve no final não foram apenas
acerca de Gould, mas sobre si mesmo e sua própria carreira literária. Em meu imaginário, esta obra se junta às
minhas próprias reflexões sobre a mística que envolve os andarilhos de rua,
numa ótica romântica, é verdade, mas muito além da cruel realidade que se abate sobre os índios Galdinos que tentam sobreviver nas ruas de nosso país.
" O Segredo de Joe Gould" - Joseph Mitchell - Editora Companhia das Letras - 157 págs. - Nesta edição de 2003 existe um posfácio excelente escrito por João Moreira Salles.
Pois é, a vida real é bem mais real que a realeza. Engolimos histórias que não vivemos e acreditamos no que não vimos.Sempre tive vontade de me aproximar desses carentes e saber de suas vidas,mas o receio de ser intruza não permitiu. Certo dia, enchi uma sacola de roupas sem mais uso, mas ainda perfeitas e limpas e sai pela rua para dar aos mendigos que encontrasse. Precisavam ser mulheres pelo menos.Andei por varias ruas e nada! Na volta encontrei uma moça sentada na calçada, parecia meio embriagada, ofereci então a sacola. Depois tive que voltar a passar por ali e a sacola já tinha virado um copo de papel com pinga. Ela havia trocado. Pensei comigo: Puxa, lavei tudo com tanto carinho, passei para entregar tudo limpinho e a danada trocou por pinga! Depois refleti melhor e pensei: "Bem, pelo menos dei a ela algo que pudesse trazer satisfação.
ResponderExcluirÉ assim, uns querem roupas, outros pinga! Adorei seu texto!!!!!
É exatamente esse o ponto : ao nos aproximarmos de pessoas que se encontram nesta condição, precismos nos desvestir de nossa lógica tradicional, de nossas idéias de certo e errado que não funcionam neste círculo infernal habitado pelos moradores de rua em geral. É um erro por exemplo, confundi-los com pedintes pura e simplesmente, pois muitos destes últimos não são moradores de rua e fazem da mendicância um tipo de profissão. Lembro-me de um rapaz que ficava lá pela Avenida Ipiranga, há duas décadas, e que tinha um corpo absolutamente sarado e ficava o dia inteiro, vestido apenas com uma calça imunda se exercitando e fazendo posições de artes marciais. Ele não fazia contato com ninguém, nem mesmo visual, e embora parecesse agressivo, bastava observá-lo por um instante para descobrir que ele não se encontrava no "mesmo mundo" que nós...
Excluiradoooro essa ideia de tomar notas e escrever sobre o que escutamos nas ruas... :)
ResponderExcluirTambém acho essa ideia sensacional, pois certamente teríamos um retrato completamente diferente daquilo que tentam nos fazer acreditar através da História. Claro que seria uma balbúrdia de conteúdos que tornaria sua organização uma tarefa inesgotável, para não dizer impossível, mas a ideia é sempre tentadora. Um projeto amplo como o que Joe Gould se propôs é inesgotável, mas nada impede que façamos excertos, de determinados lugares, de pessoas que frequentam aqueles lugares por um certo período de tempo. Penso que o resultado seria muito interessante.
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