"Um rato culto é um rato solitário" - Firmin
Já comentei sobre o processo de
encantamento que tive com os livros e a leitura e penso que muita gente
compartilha um histórico semelhante. Contudo, não posso deixar de lado o fato
de que tive a sorte de encontrar os “livros certos” que me ajudaram a encontrar
um prazer indescritível neste hábito, porque foram livros inspiradores – livros
escritos por quem gosta de contar uma boa história. Os “livros certos” são aqueles
que fazem você querer mais, se aventurar por outros livros, embora não seja
possível amar a todos da mesma maneira. Certa vez tive uma experiência incrível
com o excelente “Como a Mente Funciona” do neuropsicólogo norte-americano Steven Pinker : por causa dele, de suas
citações caprichadas e suas fartas exegeses, li mais 22 livros que eram de
alguma forma mencionados em seu texto. É claro que alguns desses 22 livros, mas
não todos, me levaram a outros tantos e, para resumir, até hoje não consegui
esgotar as referências importantes da bibliografia utilizada por Pinker. Nenhum
destes livros, como já deve ter ficado claro, se trata de um romance, mas pode-se
contar excelentes histórias a partir da ciência – quem teve o prazer de
conhecer a obra de Carl Sagan e sua série “Cosmos” sabe bem do que estou
falando.
A
literatura universal dispõe de clássicos considerados indispensáveis
para quem quer ter um mínimo de cultura, mas nem todos eles são de fato bons do
ponto de vista do leitor amante, aquele para quem a cultura advinda dos livros
é secundária ao prazer de lê-los. O leitor amante não deixa de ler,
independente do quão atarefada seja sua vida – a história de José Mindlin comprova
isso – e até por isso, lê ainda mais, sempre que consegue um momento. O leitor
amante não lê porque é preciso, mas porque ele precisa.
Descobri grandes contadores de
histórias, quase todos famosos, mas surpreendi-me enormemente quando tive em
minhas mãos a obra “Firmin” de Sam Savage. Não conhecia este autor, nascido na
Carolina do Sul – EUA e que publicou Firmin, seu primeiro romance, fora dos grandes
círculos editoriais e talvez por este motivo, tenha demorado um pouco mais para
se tornar um sucesso absoluto sobretudo entre os leitores amantes. Quando olhei
sua capa e o folheei, pensei que se tratava de um romance infantil. Contudo na
primeira página, já me dirigi ao caixa da livraria ! Ela começa exatamente
falando das primeiras linhas dos livros, das aberturas espetaculares com as
quais um autor agrilhoa seu leitor por toda a história. Savage cita algumas,
realmente espetaculares, e já ganha o leitor amante de saída : “Lolita, luz da minha vida, fogo de minhas
entranhas” – de Nabokov ; “Todas as
famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira”
de Tolstoi, ou ainda, a preferida dele – “Esta
é a história mais triste que já ouvi” – que abre a obra “O bom soldado” de
Ford Madox Ford. Tenho que concordar que das três aberturas escolhidas por ele,
a de Ford Madox Ford é a mais instigadora, tanto que fui atrás da obra, li-a e
não me decepcionei : é excelente.
Mas continuando a narrativa de
Savage, descobrimos nas páginas seguintes que ele fala como Firmin, um rato que
nasceu sobre as folhas picadas do Finnegans Wake de James Joyce e mora no forro
de uma velha livraria e que se torna um leitor voraz, literalmente, pois além
de ler avidamente o tesouro que a livraria abriga, ele também o come. A
história de como sua mãe prenha conseguiu se refugiar na livraria para ter sua
ninhada e sua luta diária em busca de alimentos é belíssima, cheia do drama que
aproxima a espécie humana de todas as demais.
Erudito, sonhador, esnobe, voyeur, mentiroso, enfim um rato que bem
poderia ser um Oscar Wilde se fosse
humano, Firmin nos leva para seu mundo e seus devaneios com “sua” Ginger Rogers,
que assistia diariamente num cinema próximo, em seus musicais com Fred Astaire.
Firmin acompanha o dia-a-dia da livraria que habita observando do mezanino, o
livreiro, um escritor fracassado, que se torna seu herói, por não mais se
identificar com seu próprio mundo, pois no mundo dos ratos, um rato culto é um
rato solitário. A humanização de Firmin é construída brilhantemente por Savage
e esta mistura de rato e homem nos arrasta para momentos de alegoria, tristeza
ou de humor deliciosos pelo paralelismo evidente com nossas próprias vidas. É
um livro que um leitor amante devora, no sentido figurado - exceto para Firmin
- numa sentada e que pode ser um ótimo começo para quem quer se apaixonar por
livros.
"FIRMIN"- Sam Savage - Editora Planeta - 2008 - 244 págs.
Destaque para as ilustrações de Fernando Krahn que tornam o livro ainda melhor.