Muito já se escreveu sobre o Holocausto e provavelmente muito ainda será escrito. Trata-se de um tema inesgotável, a meu ver, fundamentalmente por três motivos : 1) Uma iniciativa de manutenção viva da memória deste horror que se abateu sobre o povo judeu, para lembrar a humanidade e evitar que aconteça novamente, embora já tenha acontecido várias vezes depois com outros povos ; 2) O mal é atrativo para o humano, talvez mais do que o bem. O relato do mal vende muitos livros e filmes, porque o humano precisa ver o mal longe dele, como um relato, uma exceção, algo distante e circunscrito no tempo e no espaço e 3) A tentativa de catarse daqueles que viveram de uma forma ou de outra este flagelo.
O livro "Kadish por uma criança não nascida", escrito pelo húngaro Imre Kertész, deportado para Auschwitz aos 15 anos, desafia estes motivos e nos traz um relato radical e surpreendente, absolutamente pessoal e de uma contundência que nos faz trazer esse mal para bem próximo de nós, ainda que totalmente deslocados no espaço e no tempo. Não obstante suas parcas 131 páginas, o Kadish de Kertész me tocou mais do que a farta literatura através da qual já tive contato com o tema - um livro indispensável para a vida possível após o holocausto.
Penso que o Holocausto não pode ser contabilizado com os 6
milhões de judeus mortos. Existem aqueles que permaneceram vivos, e que talvez
tenham tido um destino mais cruel do que aqueles que sucumbiram : Tiveram que
encarar a morte de todas as ilusões sobre sua própria espécie. Há poucas
histórias não genéricas sobre estes sobreviventes e suas vidas após a morte de
suas esperanças e ilusões. Não os relatos dos horrores que viveram, pois destes
há dezenas de milhares, não dos atos de coragem e superação que descobriram em
si mesmo diante da tragédia, mas de suas vidas depois dos campos de
concentração e extermínio : a tentativa
de voltarem para uma casa que já não mais existia, para uma família que havia
sido toda dizimada, enfim, para uma vida que havia sido vaporizada e da
qual quase ninguém mais do lado de fora se lembrava.
Muitos sucumbiram depois, anos após a libertação, se é que pode haver uma libertação, porque
uma experiência como esta mata-nos no fundo da alma, muito antes de nossos
corpos voltarem a ser apenas matéria orgânica. Outros conseguiram significar o
que restou de suas vidas e ajudar outras pessoas , como Viktor Frankl, que
criou a Logoterapia, cuja matéria prima foi colhida dos campos de concentração
e difundida até hoje como um apoio importantíssimo de busca de significado para
aqueles que não o encontram. Outros ainda, como Primo Levi ou Bruno Bettelhein não conseguiram através de seus diversos trabalhos
publicados e fama conquistada internacionalmente, fazer a catarse do mal que
havia se apossado de seus seres : suicidaram-se. Primo Levi em 1987 e Bruno
Bettelhein em 1990.
Como se sentiram aqueles que, já do lado de fora, à luz da
história que ia sendo desvelada diante do mundo, entenderam que aquilo que viveram
aconteceu não apenas pelas ações dos nazistas, mas pelo silêncio medroso e
conivente das nações que “não sabiam” da extensão de sua tragédia? O que
pensam da humanidade, aqueles que ainda viveram o suficiente para conhecer a
realidade dos Gulags Soviéticos, o genocídio na Ucrânia que matou entre 3 a 10
milhões de pessoas, o Camboja onde um quarto da população foi exterminada,
Kosovo, Darfour, Timor Leste, Ruanda – holocaustos que se seguiram ao
HOLOCAUSTO, ainda com a conivência silenciosa e inação das (i) nações ?
Kadish é um livro pequeno, mas cuja mensagem pesa várias
toneladas. Trata-se de um monólogo ininterrupto em que o autor se expõe, na
pele de um escritor idoso, chamado apenas de B., que foi provocado por uma simples pergunta
feita por um amigo num passeio conjunto, muitos anos depois de Auschwitz , sobre se tinha filhos. O “NÃO” que se segue
como resposta, não é apenas a negativa simples, binária de um fato, mas uma
negação da possibilidade de vida após o Holocausto. Este “não” dado tão
enfática e visceralmente por B., o conduz a uma profunda reflexão de sua vida,
na busca de entender as origens daquela negativa tão absoluta, o que nos leva
ao monólogo copioso, que poderia ser lido ou recitado como uma prece – um
Kadish.
Em seu Kadish, B. repassa vários momentos de reflexão sobre
seu martírio em Auschwitz e Buchenwald, nos quais o “NÃO” visceral vai se
construindo para tudo aquilo que poderia representar uma repetição futura do
horror explícito, da maldade impregnada nos corpos cujas peles eram esculpidas
de dentro para fora pelos ossos pontiagudos, da reprodução da vida após os campos de concentração, da impossibilidade de proteger as crianças deste mal - primeiro como vítimas e depois, mais tarde quem sabe, como algozes. Mas diferentemente de tudo aquilo que eu já
havia lido a partir dos relatos de sobreviventes do Holocausto, há uma passagem
no livro que marcou-me ainda mais profundamente pelo quanto ela extrapola o
sofrimento específico deste que é tido como um dos maiores flagelos da
humanidade.
Neste ponto o autor relata um episódio em que estava doente, sendo
transportado num dos famosos “trens da morte”, numa viagem cuja duração era completamente
ignorada. A ração fria era distribuída em doses milimétricas, uma única vez por
dia e ele deitado no chão do vagão estava incapacitado de buscar com os demais ,
de tigela em punho, a rala beberagem disputada sofregamente por mãos
cadavéricas. Foi quando um homem se aproximou, chamando-o sempre de “senhor
professor” e ofereceu-se para buscar seu
quinhão ao que ele, enfraquecido que estava, cedeu sem resistência. Enquanto o
homem desaparecia naquela turba de semi-cadáveres que lotava o vagão, B.
pensava na sua sentença de morte, pois havia cedido a única coisa que poderia
lhe garantir a ração, sua tigela vazia, que certa e logicamente seria utilizada
pelo homem para ter para si mesmo uma dupla ração, aumentando algumas horas sua
própria sobrevivência. Qual não foi sua surpresa, quando o homem se
acotovelando entre a turba, retorna com a tigela de ração fria e a deposita
sobre seu abdome. Neste momento, B. não consegue disfarçar sua surpresa no
rosto, que é captada imediatamente pelo homem, que, de certa forma indignado,
lhe diz: “O que tu pensaste ?” . Neste relato, B. pede uma explicação ao
leitor sobre este fato, sobre este algo que se esconde de nossos animais
selvagens internos e que, por vezes, nos faz ilógicos, insensatos, capazes de
comprometer a própria vida em função da vida de outro. Enquanto a história se
lamenta com frases do tipo “ Auschwitz não tem explicação”, e se detém na
análise da personalidade do Führer e seus seguidores como se fossem um acidente
de percurso da humanidade, o autor nos diz: Não ! Esta é a humanidade, a
comum, aquela que é normal ! O que precisa ser entendido, é aquilo que fez o homem
retornar com a tigela, é a vida dos santos, daqueles que rompem a lógica do
humano. A questão de fundo para Imre Kertész, não é “Como pôde acontecer
Auschwitz ?” , mas ao contrário : Como poderia não acontecer Auschwitz ?
Imre Kertész foi jornalista, e desde 1953 escritor e tradutor de expoentes como Hofmannsthal, Freud, Elias Canetti, Nietzsche, Wittgenstein, entre outros. Ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2002.
" KADISH POR UMA CRIANÇA NÃO NASCIDA" - IMRE KERTÉSZ - IMAGO EDITORA - 2002 - 131 PÁGINAS.
O legado platônico, que vislumbrava o mundo das idéias como perfeito e os dados da realidade como meros rascunhos, e as religiões judaico-cristãs com seu homem à imagem de Deus, nos forneceram uma ideia de homem incompatível com aquilo que de fato somos em essência. A bondade humana, o espírito altruísta, a empatia e tudo aquilo que chamamos de valores positivos, são construções culturais e como tais são heterogêneas em sua cobertura e sujeitas a avanços e retrocessos, de acordo com o panorama social da época. O fato é : Não somos bons por natureza e a ética é apenas uma construção funcional para a boa articulação de grupos - não existe em si mesma, não é uma verdade suprema acima de nossas cabeças.Em minha opinião, também não somos maus por natureza (a própria ideia de mal é uma construção), apenas estamos naturalmente ligados às nossas próprias necessidades imediatas.Parece-me que a construção da maldade tem o descaso e a violência contra o outro como núcleo natural, revestido de todas as fantasias simbólicas que o cérebro humano pode criar. Enxergar o outro e ter empatia depende de uma visão mais ampla do que as necessidades imediatas e portanto requer desenvolvimento cognitivo mais elaborado (não apenas técnico).
ResponderExcluirCreio que existem fatores que ainda não conseguimos dominar, como por exemplo, o que leva uns serem mais generosos que outros. A ciência ainda engatinha sobre nossa própria espécie no que tange ao funcionamento total do cérebro.Tudo neste quesito,aos poucos, esta sendo desvendado pela neurociência através das máquinas que lêem e que interpretam o cérebro. O episódio do trem, citado pelo V.F em seu livro,me faz acreditar que nem todos são iguais dentro do próprio egoísmo, e que, existem pessoas cujo egoísmo é menor que a compaixão pelo outro.Se assim não fosse, talvez não existiriam mais humanos na terra. A necessidade de existir tem por traz preservar o outro para que continuemos existindo.
ResponderExcluirSeu texto é fabuloso, e aprendo muito com eles!!!!