Juli Zeh foi uma grata surpresa
para mim pois, embora ainda muito jovem, produziu neste romance uma história
densa, porém com a clareza e a mestria dignas da tradição da grande literatura
alemã. Tradição que conta com ninguém menos que Goethe, Schiller, Schlegel, Novalis,
Thomas Mann, Rilke, Robert Musil – tão presente nesta obra da jovem autora -
entre tantos. Nunca havia ouvido falar sobre ela até “A Menina Sem Qualidades”
cair em minhas mãos numa de minhas incursões de exploração em uma livraria e
após lê-lo, não me surpreendi que Juli Zeh seja considerada uma das maiores
pensadoras da Europa na atualidade, afinal profundidade, erudição e clareza
reunidas numa só autora tornou-se uma raridade nos dias que se vão, mesmo no
Velho Continente.
A obra é uma síntese da época de Juli Zeh, que retrata uma Alemanha reunificada e contemporânea, numa era pós-niilista em que a morte da fé e da filosofia torna o mundo um palco vazio de objetivos e objetos nos quais se possa crer e negar (negar é uma forma de reconhecer ao inverso, é tomar uma posição definida). O vazio existencial deixa apenas espaço para o jogo, como um antídoto para o tédio de uma vida sem sentido, cuja direção é prévia e inexoravelmente conhecida.
Penso que este cenário ganha aspectos diferentes nas diversas partes do mundo : Na velha Europa, com seu imperialismo filosófico, suas guerras, ditadores, conflitos religiosos, morticínios e pensadores brilhantes, cujas chamas imperialistas arderam mais agressivamente nos dois últimos séculos, remanescem os laivos de Nietzsche e seu abismo sem fim, tornando os jogos vazios de sentido, mas repletos de significantes : um verdadeiro enredo do nada, o uso vazio da inteligência, como um animal predador cuja presa é apenas imaginária.
No Novo Mundo, me parece que a fase pós-niilista é seguida por dois movimentos : um que chafurda no imperialismo burro, sob o poder das armas e do dinheiro, num consumismo exagerado, portanto abjeto e desnecessário - um capitalismo hipertrofiado que iniciou seu desenvolvimento no pós-guerra e parece necessitar sempre de uma nova guerra para alimentá-lo. O outro movimento refere-se aos emergentes. Estes, aparentemente, conseguem reunir o pior dos dois mundos : Fraco de idéias e armas, projeta uma distopia crescente que atinge a política e as religiões e que se desdobra como o canto das sereias sobre as mentes mal preparadas e servis, eivado pelo populismo da palavra fácil e pelo consumo das sobras do "primeiro mundo". Em todos os casos, o vazio se faz "presente", para ser preenchido pelos tais jogos - no caso europeu rende boa literatura, no americano rende Hollywood e Marvel Comics e nos emergentes rende a violência urbana gratuita, políticos indecentes, caudilhos fanfarrões, narcotraficantes, trabalho escravo, zoológicos humanos na televisão. Igualmente, em todos os casos, os resultados destes jogos apontam para um futuro absolutamente incerto, onde a moral, a ética e a justiça (valores basilares da civilização judaico-cristã) são apenas palavras cujos conceitos se tornam cada vez mais esgazeados pelo relativismo oportunista.
O que me pegou na “Menina Sem Qualidades” em primeiro lugar é que a trama é relativamente simples, porém suas personagens são bastante complexas. Esta característica já traz, a meu ver, o tom realista da obra, pois a trama de nossas vidas é muito mais simples do que nós, suas personagens – a complexidade está intrínseca ao existir da mente humana e não propriamente em seu ciclo vital.
O que me pegou na “Menina Sem Qualidades” em primeiro lugar é que a trama é relativamente simples, porém suas personagens são bastante complexas. Esta característica já traz, a meu ver, o tom realista da obra, pois a trama de nossas vidas é muito mais simples do que nós, suas personagens – a complexidade está intrínseca ao existir da mente humana e não propriamente em seu ciclo vital.
Ada, a protagonista principal, é
uma menina de 14 anos, de inteligência brilhante, sem grandes atributos físicos
e de um distanciamento afetivo que a leva crer que é desprovida de alma. Tenta
ao longo de toda a trama que se passa principalmente na escola Ernst Bloch,
utilizar sua mente prodigiosa como uma arma, uma espada sempre em riste para
liquidar qualquer um que tente tocá-la emocionalmente. Ao conhecer um colega
egípcio (com ¼ de sangue francês) Alev, entrega-se às manipulações deste nos
diversos jogos que propõe, sobretudo “O Grande Jogo”, que consistia em seduzir
um professor de educação física, levando-o a se apaixonar por Ada. Alev e Ada funcionam
como um time durante os ataques que desferem sobre seus oponentes e conduzem “O
Grande Jogo” com precisão quase cirúrgica. Ada é mais inteligente que Alev e
embora sempre o antecipe, deixa-se ficar na posição de peça de um jogo que
apenas aparentemente é dirigido por ele.
O mega romance do também alemão Robert Musil - "O Homem Sem Qualidades" ( um romance que embora tenha mais de 2000 páginas soberbas, é inacabado) é analisado na escola que Ada frequenta durante toda a trama, o que permite reconhecer que, como a obra de Musil, Juli Zeh faz uma síntese de seu tempo.
O mega romance do também alemão Robert Musil - "O Homem Sem Qualidades" ( um romance que embora tenha mais de 2000 páginas soberbas, é inacabado) é analisado na escola que Ada frequenta durante toda a trama, o que permite reconhecer que, como a obra de Musil, Juli Zeh faz uma síntese de seu tempo.
O quadro pintado por Zeh da juventude
européia de seu tempo é absolutamente desolador, porém o final do livro revela
algo que para mim foi uma surpresa : Algo parecido com o "anacrônico" sentimento
de amor entra em cena para dar um fechamento nesta história cheia da erudição
do vazio existencial.
" A MENINA SEM QUALIDADES " - JULI ZEH - EDITORA RECORD - 2009 - 544 PÁGINAS
Penso que para além das obras, temos que valorizar as editoras e a qualidade das edições que colocam no mercado. A editora Record caprichou neste lançamento e entregou a tradução aos cuidados de Marcelo Backes, germanista de primeira linha e que demonstra sua excelência ao oferecer ao leitor um glossário excepcional, que permite compreender as expressões, referencias e até trechos musicais citados na obra, além de um posfácio muito bem elaborado que situa autora e obra dentro do cenário literário europeu e mundial. Há de se notar que o título original SPIELTRIEB tem um significado próximo de "pulsão pelo jogo", mas a opção de nomeá-lo analogamente à obra prima de Musil foi extremamente feliz, por homenagear a onipresença de "O Homem Sem Qualidades" na trama de Zeh e porque é absolutamente compatível com a a trajetória de Ada.
Um belo resumo! Creio que o mundo atual esta caminhando para uma guerra e desta vez com destuição em massa. Me parece que quando a sociedade, de todos os cantos, paíra nessa espécie de noltalgia, de uma "depressão ansiosa", onde todos os valores caem por terra e não há mais o que amar e admirar,criam-se bolsões de ácido nas mentes das pessoas levando-as a qualquer tipo de destruição para sairem da inércia. A destruição acaba por servir de limpeza para essa inércia bovina, para que algo novo surja no horizonte esfumaçado e sem visão.
ResponderExcluirCreio que para o ser humano,partir para uma reforma para melhor, é difícil,é preciso destruir para reconstruir.Quando falamos de crises, quer econômica, quer de valores,torna-se impossível desmonta-las, sem uma trajédia como alavanca.Os "grandes" surgem dessas trajédias quase que sempre.
Parabéns o obrigada pelo seu texto maravilhoso.
Os grandes saltos da humanidade têm sido dados após períodos de muita conturbação que culminavam em guerras. Confesso que tenho dúvidas sobre a continuidade deste padrão, embora concorde que já estamos vivendo um período de grande destruição. Talvez seja o mesmo processo, porém não concentrado num conflito mundial armado que leva cinco ou seis anos e termina, mas num processo mais lento e espalhado de destruição que atinge não países e fronteiras, mas as instituições e os valores humanos, levando-nos à realidade do nada existencial, para que depois, quem sabe, possamos construir algo genuinamente humano, prescindindo de deuses e nações. Talvez estejamos vivendo realmente o "fim da infância" de nossa civilização, lançados no vazio e instados a nos responsabilizar diretamente por nossa existência.
ExcluirAcredito que é quase impossível as "coisas como estão" se desmontarem sem destruições e caminhar para o melhor do humano.
ExcluirAcho que estamos diante de uma grande prova de evolução e esta, só seria conseguida com uma mudança radical de valores cívicos, morais sem a necessidade de elegermos deuses, mas sim elevar a conscientização de quem somos.
Mas..... o futuro dirá!
Pois é, mas a meu ver a destruição está em pleno andamento : a família, os valores "antigos", a religião católica, as liberdades individuais, a alta cultura, a educação, entre outras coisa que eram caras à humanidade. Penso que desta vez, a mudança não será radical,mas paulatina, lenta como foram aquelas que nos fizeram chegar até aqui. Não sei se será para melhor, pois isto não é garantido. Porém, como você disse : o futuro dirá.
ExcluirA menina sem qualidade entrou na minha lista de favoritos justamente pela complexidade dos personagens e pelo final, mas até hoje não havia encontrado pela internet algo escrito sobre ele que chegasse ao menos perto do que o livro foi pra mim: vibrante, um tanto trangressor e com um desfecho digno da espera por tantas páginas. Terminei de ler e demorei para encontrar outro livro que me segurasse por muito tempo.
ResponderExcluirQuando indicava o livro pra alguém acabava justificando os links de resenha que mandava, "não é bem assim que acontece, leia do mesmo jeito". Indicarei esta página, agora :)