domingo, 27 de maio de 2012

HHhH – HIMMLERS HIRN heiβt HEYDRICH – LAURENT BINET


“Vocês deviam escolher entre a guerra e a desonra. Escolheram a desonra. E terão a guerra” – Winston Churchill


Existem apenas duas coisas que me impressionam tão negativamente quanto o nazismo :

1 - Como tanta gente pôde compactuar por tanto tempo com as piores atrocidades, na esperança de que estas não as atingisse de forma alguma – É como aquele pensamento infantil – Se cubro os olhos e finjo que não vejo, a ameaça desaparece.
2 - Como, apesar da candência ainda atual deste que é um dos piores episódios de barbárie concentrada da humanidade (a farta literatura que ainda é produzida sobre o tema demonstra isso),  muitos ainda o ignoram ou tem um interesse pífio, de "ouvir falar" e fazem dele apenas sinônimo daquilo que não gostam, ou que acham impositivo ou autocrático a ponto de chamar qualquer medida de restrição da qual não gostam, pura e simplesmente  de “nazista”.

Infelizmente, estas duas facetas humanas, covardia travestida de esperança e ignorância fantasiada de saber, não se aplicam apenas ao nazismo, mas à maioria das tragédias humanas, perpetradas pelos próprios humanos. Confesso que para ter uma idéia, que considero apenas razoável deste fenômeno, tenho estudado-o por décadas, através de dezenas de livros, filmes e documentários das mais diversas fontes e não canso de surpreender-me sobre o quanto sei pouco sobre o tema.


LAURENT BINET

Fiquei feliz de encontrar um escritor jovem, nascido em 1972, capaz de se interessar pela história a ponto de escrever um episódio dela de forma romanceada, mas buscando todas as fontes documentais, fotográficas,  linguísticas, testemunhais e locais para, apesar do lirismo que por vez trespassa seu texto, ser o mais fiel possível aos fatos.  Este foi o trabalho que o francês Laurent Binet construiu em seu ótimo romance HHhH, que significa "O cérebro de Himmler chama-se Heydrich", lançado no  Brasil no final de abril deste ano. O livro ganhou grande reconhecimento na Europa e lhe rendeu o prestigiado prêmio Goncourt de 2010.
Uma das características que chama a atenção neste romance é a trama tecida pelo autor, que imiscui a si mesmo em diversos trechos, relatando seus pensamentos e sensações no transcorrer de sua pesquisa, na manipulação de fotos e documentos ou de passagem pelos cenários (já muito modificados) onde tudo ocorreu e na própria escrita de cada capítulo. 


Ele divide com o leitor suas angústias e inseguranças de preencher lacunas da história com licenciosidades de sua imaginação ao mesmo tempo em que se percebe sua entrega de corpo e alma à tragédia que marca especificamente este episódio da Segunda Guerra Mundial.


REINHARD HEYDRICH

O romance narra os bastidores da Operação Antropoide - o atentado contra a “Besta Loira”, o “Açougueiro” ou o “Carrasco de Praga”, codinomes ostentados com orgulho pelo mais fiel e temido membro do Partido Nazista  e número 2 na hierarquia de comando da SS – Reinhard Heydrich em maio de 1942, bem como os eventos que o antecederam e que o sucederam.  




Como bem descreve  Binet, o atentado só foi possível  graças a colaboração de um punhado de heróis anônimos que resistiam à ocupação nazista e que deram o suporte necessário aos dois paraquedistas tchecos  Jan Kubis e Jozef Gabcik, que apoiados por um terceiro paraquedista (Valcik) que não estava originariamente na missão, realizaram o atentado em plena luz do dia, numa curva  de uma rua de Holesovice em Praga.

KUBIS E GABCIK


Como conseqüência direta deste atentado que acabou por ser bem sucedido, pois Heydrich morreu dias depois por septicemia, muitos tchecos foram sumariamente executados. A aldeia de Lídice, nos arredores de Praga, teve sua população quase integralmente dizimada numa das mais brutais ações da SS, apenas porque havia uma suspeita de que um dos responsáveis pelo atentado tivesse alguma relação com a aldeia . Não obstante todo o sacrifício do povo tchecoslovaco, os paraquedistas heróis acabaram por ser traídos pelo também soldado tcheco, Karel Curda.


MONUMENTO ÀS CRIANÇAS MORTAS EM LÍDICE

É uma história de reparação : O heroísmo de poucos resgatando os resultados nefastos da covardia de muitos -  A tibiedade da política inglesa nas mãos de Chamberlain e o servilismo do marechal francês Philippe Pétain, encorajaram Hitler a seguir com seus planos de expansão do espaço vital germânico, uma vez que conseguiu a anexação da Áustria e da região dos Sudetos (fronteiriços à então Tchecoslováquia) sem a necessidade de disparar um único tiro  : apenas com sua máquina infernal de propaganda e intimidação. Após a anexação dos Sudetos o então presidente da Tchecoslováquia, Edvard Benes renunciou e se exilou em Londres, liderando o movimento de libertação do país. Daí para a invasão total da Tchecoslováquia foi um passo e a designação do competente e meticuloso Heydrich como Protektor de Praga, fazendo de seu presidente Hácha, sucessor de Benes, apenas mais um dos fantoches a serviço do Reich alemão. Heydrich era um dos mais dedicados nazistas a conduzir os planos da "Solução Final", junto com seu assecla Eichmann. Benes então convoca Gabcik e Kubis para a Operação Antropoide, que consistiu em saltar de paraquedas sobre a Tchecoslováquia e empreender a missão suicida de assassinar o Obergruppenfüher Heydrich.



A figura de Heydrich, bem como sua trajetória até os mais altos escalões da SS, como braço e cérebro de Himmler, é bem esmiuçada por Binet. Heydrich encarnava tão bem o ideal nazista tanto na concepção quanto na ação, que chegava intimidar os próprios nazistas – a relação dele com Himmler era de cautela de ambas as partes.



Binet se emociona com a história que conta e demonstra isto o tempo todo e quando narra o episódio do atentado propriamente dito, o faz em descrição cinematográfica, como se pudesse suspender a narrativa, suprimir-lhe o tempo real numa espécie de câmera lenta muito bem executada.  Esta emoção que Binet coloca em seu livro, nos transforma em cúmplices de Gabcik e Kubis – corremos com eles em sua fuga tresloucada logo após o atentado no qual tudo o que poderia dar de errado, deu, exceto que acabou por ser bem sucedido ! Escondemo-nos com eles na cripta da Igreja de São Carlos Borromeu (hoje denominada de Igreja de São Cirilo e São Metódio) e resistimos ao ataque por todos os lados de mais de oitocentos soldados da SS. 
Interessante observar que após o episódio do massacre de Lídice, o mundo "tomou conhecimento" das atrocidades nazistas, não mais pela conversa fiada de seus medrosos governantes, mas pelas imagens e pelas notícias enviadas diretamente do palco da tragédia : a máquina de propaganda nazista começa a ruir.



Gostaria de que mais escritores romancistas se dispusessem a escrever sobre capítulos específicos da história : é muito mais instrutivo entrar em sintonia com as emoções do autor em cada passagem do que se deparar com a narrativa seca e caudalosa da maioria dos historiadores.





HHhH - LAURENT BINET - COMPANHIA DAS LETRAS - 337 PÁGINAS.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

PARTÍCULAS ELEMENTARES – MICHEL HOUELLEBECQ

"Nós, em geral, sabemos onde estamos em relação à realidade e não queremos saber mais nada sobre ela."




No início deste século, fui surpreendido por um autor francês do qual nunca havia ouvido falar: Michel Houellebecq.  Partículas Elementares foi o primeiro livro que li deste autor e fiquei absolutamente hipnotizado por sua narrativa e pela sua habilidade em tratar de assuntos   complexos com a mesma desenvoltura com que trata dos simples. Ao mesmo tempo em que discorre com fluidez teses científicas, denotando uma cultura acima da média neste campo, narra intercursos sexuais com a máxima riqueza de detalhes, que pode parecer desnecessário, mas confesso que não vejo uma linha deste livro que não devesse estar onde está.


MICHEL HOUELLEBECQ

Houellebecq é um autor polêmico que alinha sua mira afiada sobre o declínio da civilização ocidental na pós-modernidade, quando os humanos começam a perceber que a substituição de Deus e da religião pela ciência e pela racionalidade não conseguiu realizar nem a promessa de descobrir o sentido da vida, nem tampouco a de descobrir a fórmula da felicidade. Com exceção de “O Mapa e o Território”, que acabou de ser lançado no Brasil, li toda a sua obra traduzida para o português : Extensão do Domínio da Luta; Plataforma; A Possibilidade de Uma Ilha; Partículas Elementares. Em todos eles percebo no autor os traços desta decepção pós-moderna, de uma melancolia que, como diria Emil Cioran, é bem mais branda que a tristeza, pois carece de um objeto externo específico, porém é mais duradoura, pela falta mesma de objeto específico. A melancolia é um processo solitário, interno, que só pode deixar-se entrever nas atitudes e na escrita de quem a possui. Vejo na obra de Houellebecq, um eixo tripartite que trespassa seus romances de forma inequívoca : 1) A decepção com a pós-modernidade, 2) A decepção com o hedonismo, sobretudo sexual e 3) A esperança de uma reforma do humano através da engenharia genética e das técnicas de clonagem.


Sua escrita chega a ser brutal em alguns momentos e alguns críticos execram a sexualidade explícita e exacerbada de parte de suas tramas, mas penso que este tipo de análise é absolutamente superficial, com laivos da pandemia do Politicamente Correto que se espalha pelo globo terrestre nas últimas décadas : Não há obscenidade maior, pornografia perversa mais elaborada do que aceitarmos placidamente que um comediante saia algemado de uma casa de espetáculos porque contou uma “piada preconceituosa” e um assassino confesso saia pela porta da frente de uma delegacia, com direito à entrevista na televisão para que ele dê sua “visão de mundo” e sua versão dos acontecimentos que o levou a matar uma pessoa para roubar. 


Vivemos em tempos em que os sentidos são cada vez mais transitórios com scripts ordinários como os velhos pulp - fiction dos anos 50, encenando num teatro de marionetes uma peça de mal gosto, sob os cordames do Mercado e pelas mãos de um titereteiro pusilânime chamado Estado.

  
Partículas Elementares conta a história de dois meio-irmãos por parte de uma mãe hippie, Michel e Bruno que se encontram apenas na adolescência e empreendem buscas pessoais em direções bastante distintas do cenário da vida humana : o primeiro é biólogo, gênio em matemática, pesquisador, racional e determinado, que vive uma vida pessoal prosaica, onde sua libido não consegue encontrar forma de expressão senão pela sublimação intelectual.  Já Bruno, professor de literatura, busca  encontrar no prazer sexual o Graal que irá perseguir em aventuras cada vez mais inconseqüentes.
Enquanto Michel, que era obcecado pela  idéia de reprodução humana sem sexo e por clonagem celular (sua busca pelas Partículas Elementares da vida), resolve se demitir do instituto de pesquisa em que trabalhava para retomar um antigo projeto genético abandonado logo no início de sua carreira, Bruno tem  uma crise depressiva após uma tentativa frustrada de sedução de uma de suas alunas e acaba se internando em uma clínica para tratamento psiquiátrico. Os irmãos se encontram em vários momentos e embora estejam ambos passando por crises pessoais intensas, o diálogo entre eles é quase surreal, tamanha a distância aparente de suas visões da vida e suas buscas pessoais.

É interessante observar que no desenrolar da trama, estas duas personagens, com suas respectivas libidos apontadas em direções opostas, caminham rumo ao mesmo destino : a decepção e a impossibilidade de redenção da própria vida. 


Michel reencontra Annabelle, uma antiga paixão pela qual só havia desenvolvido um relacionamento platônico e começa um esboço de relacionamento amoroso, frente sua total inadequação ao contato físico e à expressão de seus sentimentos. Ao mesmo tempo, resolve voltar à Irlanda, onde desenvolvera seu projeto de clonagem de células humanas que acabara por abandonar prematuramente. Bruno resolve abandonar sua mulher, por quem já não conseguia mais sentir atração sexual, e se aventurar num acampamento de nudismo em busca de experiências sexuais que o excitassem. Neste acampamento, após inúmeras frustrações, conhece Christiane, com quem acaba por ter um tórrido romance que se estende para a vida além do acampamento. Christiane conduz Bruno à sua vida de devassidão sexual, em clubes de swing e sexo grupal, trazendo todo o estímulo que ele tanto buscava. 


Ao mesmo tempo, Michel, de volta à Irlanda, tem a notícia de que seu trabalho não fora interrompido, mas ao contrário, frutificara, pois outros pesquisadores haviam confirmado seus cálculos que abriam novos caminhos para a humanidade, não apenas da reprodução sem a necessidade do intercurso sexual, mas a possibilidade de se estender para várias partes do corpo a presença dos receptores responsáveis pelo prazer sexual (corpúsculos de Krause), que normalmente se encontram mais concentrados apenas em pontos específicos da genitália feminina e masculina.

CORPÚSCULO DE KRAUSE
Partículas Elementares ganhou em 2006 uma versão alemã para o cinema que merece ser vista, mesmo após ler o livro, pois além de uma adaptação magistral, conta com um elenco excelente que parece ter saído diretamente da imaginação de Houellebecq.



O final do livro é surpreendente e funde,a meu ver de maneira brilhante, a tragédia e a esperança, que acabam de certa forma aparecendo em outras obras do autor.



"PARTÍCULAS ELEMENTARES" - MICHEL HOUELLEBECQ - EDITORA SULINA - 340 PÁGINAS.