sábado, 31 de março de 2012

O FÍSICO – NOAH GORDON


“Quando as pessoas adoecem de si mesmas, a empatia e o amor são mais relevantes do que qualquer técnica de cura”



Num momento histórico em que parece que a vocação foi totalmente solapada pela máquina de moer carne do mercado de profissões; em que os pais parecem não inspirar mais os filhos com suas obras, escolhas  e sabedoria; em que o sucesso é medido exclusivamente pela riqueza material, muitas vezes em detrimento à qualidade ou relevância do que se faz para obtê-la; em que o mérito e esforço pessoal podem ser absolutamente ultrapassados ou anulados pela política ou compadrismo perverso; em que fazer rápido é mais desejável do que fazer bem feito; em que o valor da vida humana se relativiza de acordo com seu significado ideológico e não por simplesmente ser uma vida humana como qualquer outra; em que a medicina e a engenharia fundem máquinas, fármacos e técnicas para consertar corpos através de procedimentos precisos, mas que são cada vez mais incapazes de gastar algum tempo para conhecer seus pacientes com um pouco mais de profundidade, através de um interesse genuíno pelo ser que está diante de si; tempos em que o Dr. House (que tem ojeriza ao contato com pacientes) encanta muito mais do que os humanos Dr. Kildare ou Dr. Ben Case, de um passado nem tão distante, jamais sonharam... Enfim, neste momento em que vivemos , penso que livros como “O Físico” de Noah Gordon, além da satisfação lúdica que representam, são um excelente contraponto, um marco de reflexão sobre o que estamos fazendo com nossa civilização. 


Noah Gordon é um contador de histórias, daqueles que tenho valorizado neste espaço desde o início : É daquele tipo que quando descreve um andarilho cozinhando uma carne em banha de porco sobre uma fogueira, sentimos o cheiro, vemos seus fumos se desdobrando no ar , ouvimos a gordura chiar na frigideira e sentimos apetite, vontade de comer algo impensável se fosse descrito sem o brilhantismo de Gordon. Tenho lido seus livros ao longo dos anos e me saciado com sua imensa capacidade descritiva e do humanismo de suas personagens. Embora tenha estudado medicina por um semestre por insistência paterna, tornou-se jornalista e mais tarde escritor. Além de exímio contador de histórias, percebe-se em sua literatura a preferência por temas relacionados à curas, medicina e judaísmo, mas acima de tudo, a cura através do humanismo, da capacidade de entrega de um humano a outro ser.  Das obras que li, O Físico (que faz parte de uma trilogia que conta ainda com “Xamã” e “A Escolha da Dra. Cole”) se destaca francamente pela epopéia humanista de Rob Cole, um jovem inglês, em busca de seu sonho máximo : estudar na melhor escola de medicina do mundo na época (século XI) que se localizava na Pérsia (hoje Iraque) e comandada por ninguém menos que Avicena ( Ibn Sina), um dos maiores polímatas do Islã, versado em múltiplas áreas das ciências e filosofia (estudou e comentou obras greco-romanas, como Platão e Aristóteles), além de ter produzido vários tratados de medicina.  Penso que “O Físico” contém elementos de um grande romance : uma saga pessoal que envolve amor, drama, batalhas, sofrimento, busca e superação, além dos componentes históricos que pontuam a trama, jogando luzes sobre a Idade Média, a “Era de Ouro do Islã”, onde o Oriente era o grande pólo da ciência e da filosofia, enquanto o Ocidente ainda se debatia entre guerras, pestes, invasões e suas consequências – a miséria e a fome.


Rob Cole é um menino inglês, filho de família numerosa e paupérrima, que após a morte dos pais é adotado por um Barbeiro (nome dado aos práticos que percorriam os povoados e cidades da Europa com suas carroças, oferecendo curas, elixires, sangrias e toda sorte de procedimentos “protomedicinais”). Logo se estabelece uma relação de afeto entre os dois e não obstante o Barbeiro ser um verdadeiro “vendedor de óleo de cobra” e um beberrão , consegue transmitir muitos conhecimentos práticos ao menino, fazendo-o descobrir em si mesmo uma capacidade incomum de através do toque, pressentir quando a vida de uma pessoa estava se esvaindo. Rob torna-se apaixonado pela possibilidade de proporcionar cura aos males que afligem os enfermos que buscam no Barbeiro o alívio para seus sofrimentos e percebe que seu toque é um dom que tem algum poder curativo.


Neste ponto o que para alguns pode parecer um dom místico, a mim parece pura e simplesmente uma profunda empatia e a sensibilidade  de perceber e de transmitir conforto ao outro através da capacidade de amar e se entregar a um toque, quando os corpos se tocam, trocam energias e se equilibram.  É notório mesmo para qualquer “médico-engenheiro” , a capacidade de recuperação de um enfermo quando este se encontra amparado psíquica e afetivamente em comparação aos enfermos abandonados em um leito de hospital. Quanto ao “toque curativo”, qualquer pessoa que tenha tido a oportunidade de receber um abraço generoso, receptivo, caloroso e amoroso, sabe o bem estar físico decorrente deste simples gesto. É uma pena que tais abraços sejam tão raros, tão mesquinhamente economizados, tão reprimidos, tão negados como se um corpo só pudesse se entregar a outro se for por motivações sensuais. É uma pena que seja necessário pagar para que um desconhecido toque nossos corpos em clínicas de diversas especialidades, quando estes mesmos corpos se cruzam o tempo todo evitando se tocarem.


Não se trata da crença ( em minha opinião, ingênua) de que passes corporais, impostação de mãos e conversas curem doenças graves, tumores e má formações, mas de entender que qualquer procedimento médico representa apenas 50 % da possível cura, pois somente a resposta do organismo tratado é que poderá completar este processo e para tanto o SER que representa este organismo precisa mais do que técnica para querer se curar.


O nascimento da própria Psicanálise se deu   através da observação de médicos sensíveis o suficiente para perceberem que seus pacientes demandavam mais do que uma receita ou um exame clínico : precisavam ser ouvidos, precisavam se sentir acolhidos e muitas vezes a consulta era curativa por si mesma, sem a necessidade de outros procedimentos.


Voltando à história de Noah Gordon , Rob, após inúmeras aventuras pela Europa Medieval acompanhando o Barbeiro, fica sabendo da existência da Escola de Medicina de Avicena localizada na Pérsia e que só franqueava seu acesso a judeus. Seu desejo de aprender com o maior mestre da medicina da época e de poder curar as pessoas o faz sonhar com a possibilidade de cursar a escola, apesar dos evidentes e aparentemente intransponíveis empecilhos : ele era Inglês, cristão, pobre e vivendo a milhares de quilômetros de distância de seu sonho. Rob empreende então uma fabulosa aventura na busca deste sonho, na qual sua determinação irá ser testada muito além dos limites. Sua viagem rumo à Pérsia é marcada por todo o tipo de percalço, obrigando-o a se desdobrar para continuar vivo e firme em seu objetivo, ao mesmo tempo que conhece o amor, o acolhimento e a bondade daqueles com quem é obrigado a cruzar pelo caminho. Durante seu imponderável e longo percurso, assumiu uma identidade falsa como se fosse um aluno judeu e aprendeu todas as peculiaridades do Judaísmo, seus rituais, símbolos e significados para estar apto a ser admitido na escola, quando lá chegasse.


Aqui, Noah Gordon desfralda as velas de seu poder descritivo e nos leva a uma viagem fascinante por entre os costumes do povo judeu e do Oriente antigo e constrói uma personagem cujo amor e disponibilidade de ajudar o outro só é equiparado com sua força de superação na busca de um sonho praticamente impossível à maioria dos mortais.  Rob Cole não partiu para enfrentar o mundo desconhecido e hostil em busca de fortuna ou de fama, mas para buscar o conhecimento que lhe faltava para ser um bom “Physician”, ou seja, um bom médico. Não obstante tivesse “um dom”, sabia em seu íntimo que este só poderia ser realmente útil se associado ao conhecimento cujo acesso lhe cobraria um árduo preço.
Gordon costura bem a história e nos dá um final bastante satisfatório, sem estardalhaços, sem grandes apoteoses, coerente com o humanismo de sua personagem principal.  



"O FÍSICO" - NOAH GORDON - EDITORA ROCCO - 592 PÁGINAS



terça-feira, 20 de março de 2012

EU FUI VERMEER – A lenda do falsário que enganou os nazistas - FRANK WYNNE

"O QUE FAZ UMA PESSOA EXTREMAMENTE TALENTOSA QUERER SER OUTRA PESSOA ?"



No atual mundo do entretenimento, o que conta é o público, o consumo imediato pela massa ávida de diversão abrangendo vários tipos de arte.  Música, Literatura, Cinema, Teatro (bem menos) são consumidos e descartados rapidamente, enquanto vários talentos são absolutamente desprezados: Instrumentistas espetaculares, vozes esplendidas, escritores sensacionais vagam pelo mundo sem jamais saírem da obscuridade, enquanto artistas bem menos dotados alcançam fama e fortunas estratosféricas : o mercado é medido pelo público disposto a pagar pela arte em forma de diversão. Contudo, alguns tipos de arte têm um consumo mais restrito e não podem ser valorizados pelo público que os querem desfrutar : é o caso da pintura e da escultura, para citar dois exemplos mais comuns. Este tipo de arte requer pura e simplesmente contemplação e é sempre refém de um museu ou colecionador que detém a sua posse.



É muito difícil entender porque o mercado de arte da pintura tem um processo de valorização tão obscuro e complexo, capaz de precificar obras na casa das dezenas de milhões de dólares, quando seu autor viveu e morreu na mais negra penúria. Na verdade, poucos são os talentos da pintura que são agraciados pelo reconhecimento do mercado de arte e raramente isto se dá durante a vida do artista e mesmo quando ocorre, certamente valerá muito mais depois que o mesmo se for, sobretudo porque não poderá produzir nenhuma outra obra, tornando as existentes mais raras. Mas isto não é um vaticínio : alguns pintores conseguiram muito reconhecimento em vida, mas até que ponto uma obra é valorizada pela sua qualidade intrínseca e o quanto é valorizada pelo mito de seu autor ? Como esse mito é construído, como é alimentado ?
O que torna uma obra tão valorizada num momento em detrimento a outro quando foi produzida?  Rembrandt tinha o hábito de repintar suas telas, cobrindo pinturas antigas, por falta de dinheiro para comprar material, morreu na mais completa miséria – Em 2000, teve seu “Retrato de uma dama de 62 anos” arrebatado por US$ 28.700.000 ! Porque Van Gogh só conseguiu vender um único quadro durante toda sua vida, ainda assim para seu irmão, e alcançou em 1990 a espantosa soma de US$ 82.500.000 com seu “Retrato do Dr. Gachet” ?  




Mark Rothko não teve o mesmo destino dos velhos mestres, foi muito bem sucedido e aclamado em vida, mas o que dizer de sua obra “White Center” (abaixo) ter sido vendida por nada menos que US$ 72.800.000 ?


Por mais que Rothko tenha sido um intelectual, por mais que a escola moderna possa criar um milhão de teses e conceitos, por mais que eu mesmo aprecie as cores e a sensação que esta obra desperta, a pergunta que não cala em mim, é : O que há nesta obra que valha esta quantidade de dinheiro ? Qual o critério de avaliação ? Não é possível se pagar pela pintura pura e simples, visto que em termos de técnica não ultrapassa as habilidades de uma criança de seis anos. Pelo que então se paga ?
Outro exemplo : gosto muito da obra de Jackson Pollock, certamente bem mais elaborada do que as de Rothko, mas o que leva esta obra (abaixo) valer US$ 140.000.000 ?





A questão é : Se fosse pela qualidade intrínseca, pela perfeição ou imperfeição, pela personalidade da escolha das cores ou pelo talhe da pincelada, certamente Han Van Meegeren, nascido em 1889 em Deventer, teria suas obras avaliadas no mesmo nível de Johannes Vermeer, o grande mestre de mesma nacionalidade, nascido 250 anos antes. Porém, na época de Van Meegeren , a arte moderna já havia solapado todas as técnicas da antiga escola clássica, nas quais os holandeses tanto se destacavam, inclusive ele. Sua solução foi absolutamente brilhante : Já que com sua técnica não poderia ser um mestre no presente, resolveu tornar-se um mestre do passado - a reencarnação de Johannes Vermeer.




Quem teve o prazer de assistir ao filme “Moça com brinco de pérola” pode ter uma idéia bastante razoável de como foi a vida daquele que é considerado um dos grandes gênios da "Era Dourada" da escola holandesa – Johannes Vermeer . Uma vida recheada de dificuldades financeiras que eram parcamente atendidas por um mecenas, em troca de suas pinturas de cenas familiares. Vermeer preparava seu próprio material e suas tintas e pigmentos saiam de seu atelier a partir de matérias primas como o lápis-lazúli, cinábrio, chumbo branco, índigo, criando tonalidades que marcaram toda a sua obra. Era obcecado pela luz de tal forma, que impedia que as janelas de seu estúdio fossem limpas quando estava em meio a uma pintura, para não distorcer a iluminação que ele captara. 





Este livro é sobre obras primas e também pode ser considerado uma obra prima de seu autor, pois por mais talentoso que Frank Wynne seja, penso que será difícil escrever outra obra tão interessante e bem narrada sobre um personagem tão peculiar : A vida de Han Van Meegeren, o maior falsário de todos os tempos, que conseguiu enganar museus, marchands, e o poderoso Hermann Goering - marechal do Reich alemão, vendendo reproduções feitas por ele das telas de Vermeer com tamanha perfeição, que até hoje pairam dúvidas sobre a autenticidade de alguns trabalhos atribuídos à Vermeer. A descrição do trabalho de Meegeren na busca da perfeição de suas falsificações impressionam pelo detalhismo, pelo gênio na reprodução dos materiais existentes na época de Vermeer e nas técnicas desenvolvidas por ele para o envelhecimento preciso das telas. Em outras palavras, pode-se dizer que Meegeren não apenas tinha a mesma habilidade de Vermeer para a pintura, mas outras tantas que o velho mestre nem sonhava que existiam. Meegeren conhecia além de tudo, a alma dos especialistas, dos marchands, do "mercado do mito", que fê-lo fazer uma fortuna tão robusta que por melhor que desfrutasse sua vida - e ele o fez em grande estilo - não conseguiu dar cabo de todo dinheiro auferido com suas cópias. O livro conta em detalhes suas peripécias e sua ousadia maior - conseguiu vender a tela "Cristo com a Mulher Adúltera" para Goering pelo equivalente atual de US$ 7 milhões. 




Voltamos então à questão : O que se paga quando se adquire uma obra de arte ? Van Meegeren tinha os dotes para ser um grande artista, produzindo obras com sua própria assinatura, mas desde cedo entendeu que estaria condenado à miséria se o tentasse. O mercado do mito estabelece o preço através de critérios duvidosos como também são duvidosos a autoridade e os conhecimentos dos especialistas para atribuir autenticidade a uma obra. Penso que uma vez estabelecido o mito, entra a fartura e concentração de dinheiro do mundo nas mãos daqueles que, na absoluta impossibilidade de adquirir mais objetos que satisfaçam os mais sofisticados e bizarros desejos humanos, aspiram a utopia maior : EXCLUSIVIDADE, propriedade do que é único.




Com o fim da 2a. Guerra, Meegeren foi descoberto e acusado... de entregar o tesouro holandês para os nazistas ! Em outras palavras : foi difícil provar que não se tratava de um quadro original de Vermeer. Uma vez revelada a verdade - tratava-se de uma falsificação e não de traição, foi condenado a apenas um ano de prisão, pena que não chegou cumprir, pois morreu de ataque cardíaco dias antes de ser encarcerado, aos 58 anos. Desnecessário dizer que após a revelação das peripécias de Meegeren, e após sua morte, suas cópias e alguns trabalhos originais também tiveram seus preços bastante inflacionados.

"EU FUI VERMEER" - FRANK WYNNE - Companhia das Letras - 295 páginas.


Destaque para os apêndices do autor que esclarece bastante sobre as técnicas de autenticação atuais, as falsificações (conhecidas) de Meegeren e onde estão os Vermeers verdadeiros (supostamente).

















sábado, 17 de março de 2012

A PAZ QUE EU NÃO QUERO - CINCO VERSOS EM UM SÓ FÔLEGO


"Pior do que qualquer guerra explícita, é quando seus efeitos nefastos são travestidos de paz" - EG



A PAZ QUE EU NÃO QUERO
É AQUELA TRAVESTIDA DE LIBERDADE
QUE PERMITE QUE A VOZ ECOE ESVAZIANDO-LHE O CONTEÚDO TORNANDO-A MAIS UM GRUNHIDO SEM SENTIDO EM MEIO À TURBA BARULHENTA


A PAZ QUE EU NÃO QUERO
É A DO CONFORMISMO MIMÉTICO DAS MAIORIAS
QUE SEMPRE SE ADAPTAM AO PIOR
E ACEITAM AS MUDANÇAS PARA NADA MUDAR

A PAZ QUE EU NÃO QUERO
É AQUELA DO TÚMULO ONDE NÃO HÁ SENTIMENTO OU COMPAIXÃO
 QUE TRAZ A FRIALDADE EM VIDA
 QUE FAZ COM QUE SEJAMOS INTOLERANTES COM O OUTRO OU AINDA PIOR : INDIFERENTES

A PAZ QUE EU NÃO QUERO
É A MAQUÍNICA QUE NOS REDUZ À FUNCIONALIDADES PRECISAS
NOS CLASSIFICA UTILITARIAMENTE
NEGANDO-NOS A EXISTÊNCIA PARA  ALÉM DESTA FRONTEIRA

A PAZ QUE EU NÃO QUERO
É A DA FALTA DE MEMÓRIA
DOS JOVENS :
QUE OS FAZ ESQUECER QUE FICARÃO VELHOS
DOS VELHOS :
QUE SE ESQUECEM QUE JÁ FORAM JOVENS
E A DOS ADULTOS :
QUE SE ESQUECEM DAS DUAS COISAS.

domingo, 11 de março de 2012

CRÔNICA DE UM VENDEDOR DE SANGUE – YU HUA



"Nascemos com o incrível dom de conhecer a realidade, a despeito do que nos contam sobre ela. Não são os livros nem as versões oficiais que nos mostram como as coisas são, mas nossa própria inteligência, desde que aprendamos a confiar nela." - Eliseu Gonçalves


O século XX não foi bom para o povo chinês – guerras, revoluções e fome ceifaram milhões de vidas, tingindo de vermelho para sempre as lanternas que iluminam o futuro da China. Desde a revolução de 1911 que acabou com mais de 4 mil anos de dominação das dinastias, o povo chinês viveu toda a sorte de dificuldades na tentativa de se erguer como nação. Guerra civil, invasão japonesa em 1937 e a Revolução Comunista a partir de 1949 e Mao – um capítulo à parte na história da China que trouxe grandes esperanças antes de se transformar num verdadeiro terrorismo de estado a partir da segunda metade do século passado.


Admiro muito o povo chinês sobretudo pela sua capacidade de superação da adversidade, sua resistência à fome, ao desconforto e à falta de privacidade mínima. Conheci na atualidade vários chineses que vivem no Brasil, sem conhecer o  idioma, trabalhando vinte horas por dia e se aglutinando de dez a quinze pessoas num apartamento de 70 m2. Adotam um nome “brasileiro” e conseguem se comunicar apesar de toda a dificuldade. Vivem numa condição muito ruim, mesmo pelos nossos padrões terceiro-mundistas, e isto nos faz pensar que eles estão tentando fugir de algo bem pior. Outro dia por acaso, estava navegando na internet e encontrei uma notícia que me deixou chocado : que o destino ou paradeiro do rapaz que, no final dos anos 80, se postou na frente de uma fileira de tanques na praça da paz celestial, impedindo-os de prosseguir apenas com seu corpo, sem qualquer tipo de arma ou atitude agressiva,  continua sendo um mistério, depois de mais de vinte anos ! Era apenas um movimento estudantil, pacífico que se rebelava contra a tirania comunista e que foi covardemente massacrado por tanques e pelo exército. Há quem diga que o mesmo foi fuzilado, outros que foi preso e outros ainda que dizem que ele está vivo, bem e morando em Taiwan. A falta de informação confiável continua sendo uma arma poderosa do regime. Interessante pesquisar que na época, um eminente professor de relações internacionais da USP - a mesma universidade que combate a PM em seu campus e que repudia qualquer ação policial sob qualquer justificativa - defendeu a ação do governo chinês, como sendo "essencial" para a manutenção do controle social do país. A foto deste episódio está listada como uma das mais importantes do século XX.


A arte chinesa é absolutamente encantadora e a literatura certamente faz parte deste contexto. Yu Hua nasceu em Zhejiang, em 1960. É contista, ensaísta, e autor de romances. Em 2002, tornou-se o primeiro escritor chinês a receber o James Joyce Foundation Award. “Viver”, publicado em treze países, foi agraciado na Itália com o prêmio Grinzane Cavour, em 1998. Sucesso de crítica e público no mundo todo, ganhou versão cinematográfica dirigida por Zhang Yimou, premiada em Cannes e no Globo de Ouro. Filho de pai e mãe médicos, Hua passou sua infância em hospitais, onde assistia diariamente as enormes filas de camponeses que se formavam diante dos bancos de sangue para aumentarem sua escassa renda em pleno vigor da Revolução Cultural Maoísta. Foi nesta experiência que se inspirou para escrever “Crônica de um Vendedor de Sangue”, traduzido e publicado no Brasil pela Companhia das Letras no ano passado.
O livro acaba por ser um retrato de um povo, de uma época onde a fome, a escassez, a falta de trabalho e o despotismo do exército vermelho sob comando do Grande Timoneiro, despertavam o pior e o melhor do humano.


O romance conta a história de Xu Sanguan, um operário de uma fábrica de seda, cujo trabalho era empurrar um carrinho com casulos de bicho da seda para as operárias fiandeiras, durante todo o expediente.  Neste período, conhece dois camponeses que revelam uma atividade extra que praticam, totalmente estranha para Xu Sanguan : vendem sangue de tempos em tempos para o banco de sangue do condado, comandado pelo chefe de sangue Li, um funcionário público nojento e inescrupuloso que faz da doação de sangue um negócio para tirar vantagens pessoais. Para tanto, os dois revelam a Xu Sanguan, todos os macetes desta atividade, no intuito de receber o máximo possível, preservando suas vidas. Eles bebem várias tigelas de água antes da doação, para afinarem o sangue e terem mais para doar, o que lhes rendem o equivalente a seis meses de trabalho no campo. Depois da doação, vão ao restaurante Vitória comer um prato de fígado de porco frito e duas doses de vinho de arroz amarelo para se recomporem. Xu Sanguan aprende que esta atividade pode salvá-lo nos tempos difíceis e que o que ganhava com a doação era dinheiro de sangue e não dinheiro de suor, e que deveria ser gasto apenas com coisas muito importantes. Xu Sanguan conhece Xu Yulan,  uma moça da vizinhança que era conhecida por fritar roscas pela manhã, e decide se casar com ela, embora ela já estivesse comprometida com outro rapaz, He Xiaoyong, que lhe fazia a corte cobrindo seu pai de favores. Ainda assim, Xu Sanguan consegue seu intento e acaba constituindo com ela sua família, com três filhos homens.


A descrição da vida das pessoas daquele vilarejo é prosaica, revelando a simplicidade de suas vidas, seus parcos pertences, seus casebres cujas mobílias enchiam um triciclo. A vida de Xu Sanguan e Xu Yulan é marcada por desavenças e turras de ambos e se agrava quando Xu Sanguan desconfia que seu primeiro filho, Yile, não se parece nada com ele, mas com He Xiaoyong, o que mais tarde será confirmado : He Xiaoyong é o verdadeiro pai de Yile. Não obstante a infidelidade da esposa, a família continua em sua luta diária pela a sobrevivência e os acontecimentos vão fortalecendo as relações de Xu Sanguan com Yile, tornando-o seu filho predileto. Xu Sanguan acaba sendo obrigado a vender seu sangue inúmeras vezes para tentar salvar sua família da miséria e do desastre financeiro que parece não ter fim.


As coisas pioram ainda mais quando advém a Revolução Cultural, perseguindo qualquer pessoa que tivesse qualquer propriedade tornando-as  inimigas do povo, a justiça oficial e os magistrados foram defenestrados e substituídos pela justiça popular, onde qualquer pessoa do povo podia escrever suas acusações sobre qualquer outra pessoa, colá-las nas paredes e nos postes e exigir que fossem justiçadas por tribunais populares.  A família de Xu Sanguan é atingida duplamente : Xu Yulan é acusada de prostituição (por causa de seu primeiro filho com He Xiaoyong)   e obrigada a ficar de pé, diariamente, em praça pública com uma tabuleta escrita “Prostituta”, pendurada no pescoço à disposição de seus “juízes”. Além disso, o Grande Timoneiro exige que as famílias enviem suas crianças para trabalhar no campo, podendo ficar com apenas uma delas em casa. São estes momentos em que fazem aflorar o melhor do humano – Xu Sanguan e Xu Yulan se apoiam, se ajudam e se unem para salvar a vida de Yile, que acaba por ficar doente, após alguns anos da vida impiedosa dos campos. Apesar da dureza da vida das personagens e das misérias humanas expostas em todas as suas dimensões, e talvez por esta razão, “Crônica de um Vendedor de Sangue” é um livro sutil, cuja construção das relações se dá sem lampejos de revolta ou indignação, mas como fruto da necessidade imperiosa de apoiar um ao outro pelo simples prêmio de continuar vivendo. Um pote de arroz se transforma no maior bem que uma família pode almejar e a capacidade de superar as crises pessoais em favor da vida, a maior força que um simples camponês pode arrancar não da terra crestada, mas de suas próprias vísceras.


Esta época retratada por Yu Hua, final dos anos 50, foi o “Grande Salto Adiante” de Mao e cujo legado deixou nada menos do que 30 milhões de mortos na China.
Na atualidade, a China assumiu uma posição chave na economia mundial, através de seu processo de industrialização que barateou a fabricação de bens de consumo enormemente. Confesso que temo que o século XXI também não seja bom para a China, com uma diferença: não é só Iphones e Ipads baratinhos que a China tem exportado. Muitos países parecem encantados com a possibilidade de uma economia capitalista ou como  gostam de chamar de “Capitalismo de Estado”, mas com um regime autoritário comunista, de controle e intervenção na vida privada pelo bem do povo, controle da mídia e da internet, sob a égide de proteger a verdade e a liberdade, câmeras para todos os lados que só servem para fabricar filmes de horror em tempo real e leis de restrição que não diminuem em nada a violência e a degradação da qualidade de vida das pessoas. 


O que as pessoas menos afoitas, menos hipnotizadas pela ganância e pelo consumismo podem observar na China é que sua economia se torna cada vez mais robusta, mas que isto não tem se traduzido em qualidade de vida para a maioria de seu povo – o número de suicídios de jovens no topo de fábricas de alta produtividade revelam isso, assim como as cidades fantasmas construídas anualmente, que tornam o PIB chinês um fenômeno mundial, mas que estão abandonadas ao tempo, por falta de compradores. A classe emergente chinesa abrange um Brasil : quase 300 milhões de pessoas, porém existem mais de um bilhão de pessoas que vivem com muita dificuldade e a liberdade de pensamento e expressão não estão entre os itens produzidos pela pujante economia chinesa.




"CRÔNICA DE UM VENDEDOR DE SANGUE" - YU HUA - COMPANHIA DAS LETRAS -  270 PÁGINAS.


quinta-feira, 1 de março de 2012

BARTLEBY, O ESCRIVÃO – UMA HISTÓRIA DE WALL STREET

" E SE O MELHOR A FAZER É NÃO FAZER ?" - Eliseu Gonçalves


Este conto escrito por Herman Melville me deixou de cabelos em pé, pois me deu a noção de quanto uma atitude, uma simples e única atitude pode subverter toda a ordem do "Universo Conhecido" !! A comparação feita por Modesto Carone desta obra às de Kafka, sobretudo “O Castelo”, “O Processo” e “O Artista da Fome” se justifica não apenas pelas coincidências ou analogias que podem ser feitas a partir das passagens destas obras, mas sobretudo pela a capacidade que elas têm de deixar o leitor angustiado, meio que sufocado ao se projetar em suas personagens. Uma situação limite que clama por uma catarse, uma explicação, uma saída que não chega nunca. O que mais me impressiona que de certa forma, Melville traz de seu esplêndido Moby Dick  o mesmo retrato alucinado da obstinação levada às raias da auto-aniquilação, só que numa história aparentemente prosaica, sem mares revoltos, baleeiros, marujos e todo o clima de aventura em que vive o capitão Ahab, cuja obsessão é caçar a gigantesca baleia branca Moby Dick que lhe arrancara uma perna no seu primeiro encontro. A diferença a meu ver, é que se em Moby Dick, toda a tensão e obstinação estão voltadas para a ação desenfreada, uma mistura de heroísmo e vingança urdida nas labaredas do amor e ódio do velho marujo com aquele animal espetacular – uma ligação pessoal que arrisca a embarcação e todos que estão dentro dela – no caso de Bartleby a tensão e a obstinação estão focadas  na NÃO AÇÃO, na escolha simples e deliberada de não fazer.

















Infelizmente, como  muitos, Herman Melville só foi alçado ao panteão dos grandes escritores universais, depois de sua morte. Seu sucesso em vida foi muito modesto e não chegou a desfrutar do impacto que Moby Dick teria a partir do século XX. Bartleby foi escrito e publicado anonimamente em 1853, em duas partes, numa revista americana, mas assim como Moby Dick, acabou por receber enorme reconhecimento no século seguinte : teve duas versões para cinema (1970 e 2001), além de adaptações para teatro – aqui no Brasil, a impagável e única Denise Stocklos fez recentemente uma apresentação do texto por ela mesma adaptado. 

  
Bartleby é um escrivão contratado por um escritório de advocacia situado em Wall Street, centro financeiro de Nova York, e que tem como função a copiagem e arquivamento de documentos, serviço que desempenha, a princípio, com afinco. O narrador da história é um velho advogado, dono do escritório, que tem um negócio rentável na assessoria de hipotecas e títulos de propriedade de homens ricos. Seu escritório possui uma equipe de dois escrivães e um office boy cujas peculiaridades lhe instaram a contratar mais um escrivão na esperança de equilibrar o quadro com uma pessoa calma e tranquila: Bartleby !
O que ocorre é que num dado momento, sem qualquer explicação, sendo solicitado a realização de uma tarefa de rotina, Bartleby simplesmente responde : “Eu preferiria não fazer”.  Para seu desespero, e dos leitores, o advogado não consegue arrancar mais nada de Bartleby , além da repetição crescente desta frase : “Eu preferiria não fazer” . Bartleby vai piorando a cada dia, fazendo cada vez menos o trabalho que deveria executar e deixando-se estar sentado numa mesa de fronte a uma janela, que dava para uma parede de tijolos, completamente alheio aos pedidos do chefe ou de seus colegas.  O velho advogado tenta de tudo para entendê-lo e propor alguma ajuda, mas Bartleby continua hermético, respondendo com seu mantra a toda e qualquer indagação. Ao ser despedido, sua resposta foi a mesma e não só se recusou a abandonar o escritório como também passou a morar lá, passando todas as noites entre móveis e documentos. Numa última e desesperada tentativa, o advogado convida Bartleby para morar provisoriamente em sua residência, sair do escritório e ir com ele para casa, para depois acharem uma solução melhor – “Eu preferiria não fazer”. Esgotadas todas as tentativas, e sob ameaça de arruinar a reputação do escritório com aquele morador bizarro, o advogado opta por uma alternativa radical : muda o escritório de endereço, deixando Bartleby sozinho no imóvel antigo, agora vazio.


O final da história é dramático e causa bastante impacto, pois embora o caso de Bartleby revele algum tipo de transtorno mental, fica também evidente como nosso mundo é organizado de tal forma, que quando um ato totalmente não planejado e resistente ocorre, faz desmoronar todo o edifício sob o qual construímos nossa realidade.
A resistência doentia da não ação de Bartleby na vida do advogado tem um paralelo muito interessante na história da humanidade, que ocorreria quase um século depois, também envolvendo um advogado, que de doentio não tinha nada : o fenômeno Mahtma Gandhi para os colonizadores ingleses na Índia. Num mundo atropelado pela velocidade da ação, onde ser rápido é melhor do que ser bom ou ter qualidade, o conto de Melville traz algumas reflexões importantes : E SE DISSERMOS NÃO ? E SE PREFERIRMOS NÃO FAZER ALGO QUE JULGAMOS INADEQUADO, INDEPENDENTE DO CÓDIGO SOCIAL VIGENTE ?  E SE RESISTIRMOS ? E SE O MELHOR A FAZER É NÃO FAZER ?
  
Esta é uma das facetas encantadoras da literatura : Mesmo as histórias mais bizarras, dizem muito sobre os humanos e muitas vezes, abrem perspectivas que nosso automatismo diário é incapaz de enxergar.

Destaque para a edição sensacional da Editora Cosac Naify – a qual admiro a cada lançamento – cujo exemplar resiste a ser lido : “Eu preferiria não fazer” -  vem com a capa costurada e as folhas dobradas e impressas por dentro de tal maneira que é preciso primeiro descosturar a capa e depois separar as folhas para se ter acesso ao conteúdo. A editora incluiu uma “faca” plástica para fazermos este trabalho antes de iniciarmos a leitura. Nunca tinha visto uma edição que fosse uma espécie de “poesia concreta” da obra. Note-se que na tradução de Irene Hirsch , ela prefere usar “Acho melhor não” no lugar de “Eu preferiria não fazer”, mas isso não compromete em nada a excelente tradução. Modesto Carone assina o posfácio desta edição, que a meu ver enriquece-a muito. 


BARTLEBY, O ESCRIVÃO - UMA HISTÓRIA DE WALL STREET - HERMAN MELVILLE - EDITORA COSAC NAIFY  - 46 PÁGINAS.






CAPAS DOS FILMES DE 1970 E 2001