segunda-feira, 11 de março de 2013


FUGA DO CAMPO 14 – BLAINE HARDEN      

PORQUE PARECE QUE NUNCA APRENDEMOS NADA ?


VISUALIZAÇÃO POR SATÉLITE DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DA CORÉIA DO NORTE


FUGINDO DE MIM MESMO


Jamais pretendi fazer qualquer coisa próxima à crítica literária, primeiro porque não me sinto capacitado para tanto, segundo porque já existem inúmeros blogs e sites que se dedicam a resenhar e criticar livros e terceiro, e mais importante – os comentários que faço são sobre mim mesmo, através de obras de autores que de certa forma me tocaram e que causaram uma reação que clama ser expressa. Também nunca foi minha intenção declinar, a não ser incidentalmente, posições políticas de qualquer natureza, exceto minha especial predileção pela liberdade e repúdio por qualquer tipo de ditadura. O que clama ser expresso não é ideológico mas humano, demasiadamente humano : são as dores da reflexão sincera, sem a necessidade da certeza do aparato lógico-técnico do que é certo ou errado. Estou  farto de ideologias e hoje eu poderia dizer ao Cazuza: – Não ! Não quero uma ideologia pra viver ! Nosso grande drama não é a morte das ideologias, mas daquele "garoto que ia mudar o mundo" que deixou de acreditar no seu sonho e senso de justiça e passou a acreditar em alguma ideologia que lhe foi vendida, que lhe capturou o sentimento de mudança do peito e lhe imprimiu idéias erradas, sempre erradas. Quando morre a ideologia, e elas sempre morrem, o "garoto que ia mudar o mundo" fica perdido, não tem mais referencial interno, não confia mais em seus sentidos e nada mais resta senão frequentar as festas do "Grand Monde" e permanecer em cima do muro.  Não acho que a solução para esta decepção seja uma nova ideologia : Os hippies dos anos 60 e 70 são os principais atores de um mundo cuja ideologia é o mercado de ideologias, os oprimidos pelas ditaduras de antanho são os opressores atuais, ávidos do poder que antes combatiam. 
Aí eu pergunto... Você já conversou com um idoso ? Refiro-me a um idoso que não esteja ainda cumprindo um papel no "Grand Monde", que já abriu mão de sua participação no teatro social. Ouviu-o ? Ouviu-o de verdade ? Perguntou o que ele pensa de suas ideologias de juventude em comparação com sua visão de mundo atual, com real interesse em compreender sua resposta ? 
Eu vivo fazendo isso... e pelas respostas que ouço, vejo o quanto somos enganados em nossos anos mais produtivos. Deixamos para trás aquilo que era mais importante, mais valioso - uma mente aberta, sem malícia, ávida da vida e do mundo, capaz de extrair puro prazer da simplicidade - trocando tudo isso por uma ideologia e por heróis de papelão, que podem ser governantes, executivos, artistas ou qualquer outra coisa que nos pareça GRANDE o suficiente para nossos sonhos...
O problema é que nossos sonhos só cabem em nós mesmos, sejam eles do tamanho que forem. Por esta razão que repito : Não quero uma ideologia :   Quero minhas memórias de menino que nem sabia o que significava a palavra ideologia. 





Cheguei à conclusão que não se sabe com certeza o que é certo ou errado, apenas se sente e se não é possível sentir isso, então nada do que é pensado tem grande valor, além do retórico. O que acontece é que desde cedo somos instados a acreditar cada vez menos naquilo que sentimos e cada vez mais em alguma ideologia. Somos cooptados pela retórica daqueles que arrogam a si o poder de resolver os problemas da humanidade, desde a espiritualidade até a fome.




Foi por esta razão que ao ler FUGA DO CAMPO 14 , de Blaine Harden, dei um tempo e parei de postar minhas impressões. Precisava digerir vários "desconfortos" que se  agitavam em minha alma.  Fiquei me perguntando porque minha aparente e recente predileção por relatos de dor e sofrimento causados pela privação da liberdade, pelo cárcere algoz dos regimes totalitários, pelas tão repetidas histórias de genocídios e assassinatos em massa. Comecei a pensar porque a partir do século XX, quando os relatos tornaram-se mais e mais públicos a partir de filmes, livros e depoimentos, continuamos calados e inertes frente à eterna capacidade dos humanos em justificar seus delírios de poder. Penso que foi Benedetto Croce quem disse que a “História da Humanidade é a História da liberdade humana”, e o eminente historiador não está errado,  mas talvez o mais adequado seria “A História da Humanidade é a História da dominação de uns sobre os outros”, ou justamente a “História da Ameaça à liberdade humana”, presente em cada segundo de nossa história conhecida – a liberdade do cidadão comum está sempre sob a espada de Dâmocles, seja em tempos de guerra ou de paz, de fartura ou miséria. Talvez tanto Hobbes quanto Rosseau estejam errados : não somos essencialmente maus nem tampouco bons selvagens corrompidos pela sociedade, mas  essencialmente ingênuos, pois esperamos que as soluções venham sempre de fora, do topo de uma consciência que nos é superior. Dependemos eternamente dos grandes pais – ou os Deuses ou os Líderes e em muitos casos, Deuses representados por Líderes!
Vivemos trocando de "chefe" e mesmo quando achamos que não servimos a chefe nenhum, estamos a serviço de nossas crenças, muitas vezes uma verdadeira colcha de retalhos de fragmentos do que nos foi vendido ao longo da vida.




Lembrei-me das desculpas do Ocidente frente ao holocausto judeu – “Nós não sabíamos” – e os recentes massacres em Ruanda, Timor Leste, Darfur, Chechênia, Bósnia ,  sobre os quais o mundo inteiro sabia e se calou tão covarde e absurdamente como antes. Comecei a pensar que a desgraça humana, seus milhares de holocaustos cotidianos só servem para alimentar a indústria midiática : ganha-se dinheiro expondo para os humanos seus horrores, através de notícias, filmes, fotografias, livros, documentários. A espetacularização tão bem descrita por Debord para caracterizar a insanidade capitalista, torna irreal o que foi ato, o que custou sangue e carne, desespero e agonia, transformando a triste história da dominação humana, de uns sobre os outros, em meros folhetins midiáticos, novelas nas quais as vítimas não se levantam nem batem a poeira da roupa após a apresentação.   Se Debord tivesse prestado mais atenção à Gramsci, talvez ampliasse seus conceitos também à insanidade socialista : a espetacularização é uma arma de alienação, não da "burguesia", mas do poder - QUALQUER PODER ! 
Enquanto isso, o poder aboletado reescreve a história nos livros escolares oficiais, a seu bel prazer, “re-significando” o passado à luz da mentirosa revolução das massas, capitaneada por átomos sociais de muito pouca massa cinzenta, mas com o apetite de um buraco negro, devoradores de massas  humanas em troca do vazio retórico.




KIM -II- SUNG - O GRANDE LÍDER
FUNDADOR DA DINASTIA QUE FAZ DA
CORÉIA DO NORTE O QUINTAL DE SEU
PALÁCIO
MAO - O GRANDE TIMONEIRO















Para que serve o conhecimento, se somos incapazes de evitar aquilo que já condenamos ? O que justifica Cuba e seu regime opressor, seus 100 mil mortos políticos e os prisioneiros que foram esquecidos pelo mundo e o que justifica a existência atual de campos de concentração na Coréia do Norte, como o tal campo 14 do qual Shin Dong conseguiu fugir arrastando-se sobre  o cadáver de seu companheiro que lhe serviu de proteção contra a cerca de arame farpado. Isso aconteceu em 2005 e neste exato momento, milhares de norte-coreanos não desfrutam da mesma “sorte” que Shin Dong e continuam entregando pais, mães e irmãos aos guardas, acusando-os de qualquer deslize, real ou imaginário, apenas para receberem um punhado de arroz ou uma migalha qualquer da mesa de seus opressores.




Estamos absolutamente sensíveis ao que é dito, a ponto de achar mais grave uma piada de mal gosto do que um latrocínio, de demonizar qualquer opinião que não esteja inserida na palavra de ordem das massas e suas bandeiras políticas e a ponto de não permitir, em nome da liberdade, que as pessoas expressem livremente suas opiniões. A IDEOLOGIA TORNOU-SE MAIS IMPORTANTE QUE A REALIDADE ! 





Não vejo manifestações pela liberdade, mas pela imposição ou supressão de idéias. 
Vejo gente defendendo a ditadura de esquerda ou de direita, mas não vejo muita gente preocupada com a ditadura que sempre se segue a um processo de Wellfare State implantado por um plano de poder qualquer.


INTERROGATÓRIO NOS PORÕES NORTE-COREANOS

Assim como os nossos brilhantes jovens militantes brasileiros disseram na recente visita da blogueira Yoani Sánchez – “Os cubanos não reclamam!!!”, podemos dizer o mesmo dos norte-coreanos – não se vê nenhum norte coreano reclamando de nada... porque será? Só ouvimos falar, pela mídia, dos testes nucleares que o herdeiro da loucura familiar assistida pela corja de sub-comandantes que gozam de uma vida absolutamente superior a da população e para os quais bajular um moleque ungido pela dinastia é altamente vantajoso. Diga-se de passagem, nem os russos e ucranianos reclamaram nada ao longo de décadas e os crimes cometidos em nome do "Regime do Povo", ainda estão brotando dos arquivos recém abertos da extinta URSS, ainda que os da temível KGB jamais venham a público. 
O mesmo mundo que bajula Barack Obama o presidente da nação mais poderosa da terra, acusa e hostiliza a tal blogueira (por quem não tenho nenhuma simpatia em especial) de ser agente da CIA, como se Obama e CIA fossem coisas absolutamente distintas e o primeiro não fosse o comandante em chefe da segunda. Não querem dialogar com a blogueira, nem expor suas discordâncias, mas simplesmente impedi-la de falar, de dar entrevistas de expor suas opiniões – não importa se a serviço da CIA, de Fidel ou dela mesma.

MANIFESTAÇÕES LEGÍTIMAS E DEMOCRÁTICAS, NÃO FOSSE O FATO
DA BLOGUEIRA TER CANCELADO VÁRIAS ENTREVISTAS PORQUE
SIMPLESMENTE NÃO A DEIXAVAM FALAR.
O mesmo mundo que expulsa o diretor de cinema Lars Von Trier do festival de Cannes, porque ele tentou expressar que compreendia Hitler (sabe-se lá o que ele ia dizer e acabou não dizendo), é absolutamente conivente, ou no mínimo silente, em relação aos atualíssimos campos de concentração e extermínio da Coréia do Norte e com os filhotes da ditadura socialista que ainda assolam países pouco desenvolvidos, sem noção de história, petrificados pela poesia de um filho do idealismo alemão (mais um, como Hitler) que dizia ele mesmo não acreditar no que escrevia. 
Mais uma vez o ranço ideológico fazendo as vezes de fatos - não há nada de errado com as ações de justiça social e distribuição mais equitativa de renda, e com políticas promotoras de cidadania. O que sempre dá errado é a criação de um monstro estatal que se arbitra o poder supremo através da glorificação e do culto à personalidade, não importa qual a bandeira que empunhe.


PROVAVELMENTE SER O QUINTAL DA CHINA COMUNO-CAPITALISTA
 TEM SUAS VANTAGENS

Como podemos permitir que existam regimes como os da Coréia do Norte ? Como conseguimos ser esquizofrênicos a ponto de cindir a realidade entre o que pensamos e o que vivemos ? Como podemos ainda permitir e lustrar o ego de caudilhos, fazendo vistas grossas à sua retórica populista que ao mesmo tempo que estende a mão aos mais necessitados, cobra devoção e não tolera qualquer tipo de discordância ou oposição ?




O livro não é excepcional e jamais se tornará um clássico. Trata-se de um livro simples, uma espécie de relato jornalístico que o autor faz a partir de uma série de entrevistas realizadas com Shin Dong – hyuk, um sobrevivente que nasceu em cresceu num campo de concentração da Coréia do Norte, o campo 14, ao norte da capital Pyongyang, destinado aos prisioneiros considerados irredimíveis, até sua fuga espetacular em 2005, aos 23 anos.   
Shin Dong-hyuk nasceu por uma concessão dos guardas do campo de concentração que permitem o intercurso sexual entre prisioneiros desconhecidos, como um prêmio, sobretudo à delação de inimigos do regime norte-coreano ou daqueles que infringirem alguma das dez leis de conduta do campo 14, que se resumem em :

1 - Não tente fugir.
2 - É proibida a reunião de mais de dois prisioneiros.
3 - Não furte.
4 - Os guardas devem ser obedecidos de maneira incondicional.
5 - Qualquer pessoa que veja um fugitivo ou pessoa suspeita deve denunciá-lo prontamente.
6 - Os prisioneiros devem se vigiar uns aos outros e denunciar qualquer comportamento suspeito.
7 - Os prisioneiros devem mais que cumprir a tarefa que lhes é designada a cada dia.
8 - Fora do local de trabalho, não deve haver nenhuma convivência entre sexos por razões pessoais.
9 - Os prisioneiros devem se arrepender sinceramente de seus erros.
10 - Prisioneiros que violam as leis e regulamentos do campo serão fuzilados imediatamente.






DESENHOS DE SHIN DE SUAS MEMÓRIAS DO CAMPO 14
SHIN DONG 




















Shin aprendeu esta lição junto com a fala e seu instinto de sobrevivência foi tão instigado pelos maus-tratos e castigos, que tornou-se absolutamente natural denunciar sua própria mãe e irmão, entregando-os à morte, às quais teve que assistir e pelas quais não pôde lamentar, pois não sabia o que era compaixão ou culpa. Mas quando, aos 23 anos, Shin conseguiu fugir, com seu código de conduta bárbaro, teve que enfrentar um desafio ainda maior – a estranheza de um mundo em que se falava de amor, compaixão, culpa e responsabilidade, palavras para as quais não havia nele quaisquer referenciais, mas que também vive mergulhado em ambiguidades  onde o bem e o mal se misturam por vezes de maneira confusa. Contudo suas memórias o condenavam e rapidamente ele tomou consciência de seus atos, mesmo com o apoio de pessoas que se sensibilizaram com sua história, mesmo conhecendo uma pessoa que finalmente poderia amá-lo sem medo.  Como relato jornalístico, o livro é conciso e dá uma panorâmica geral sobre a Dinastia Kim que estrangula a vida dos norte-coreanos com mão de ferro, mas também dá uma visão de sua antítese - a Coréia do Sul, que aderiu a um governo liberal, ao estilo Ocidental, porém com uma competitividade incitada pelo mercado que torna este povo tão paranoico em relação à sua produtividade, que no final do expediente, após um dia intenso de trabalho... simplesmente não conseguem ir para casa.  

" Os sul-coreanos trabalham mais, dormem menos e se matam numa taxa maior que os cidadãos de qualquer outro país desenvolvido segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), um grupo que apoia o crescimento econômico sustentável em 29 países ricos " - pág. 190 



CORÉIA DO SUL - A MÃO DO MERCADO PODE SER INVISÍVEL
MAS PESA TANTO QUANTO A DE UM DITADOR
É absolutamente incrível a tendência do humano à servidão - não importa se a um déspota ou a uma imagem criada pelo mercado que nos diz que a busca da felicidade é uma obrigação e que esta felicidade está necessariamente vinculada ao que você pode adquirir. Parece que não conseguimos enxergar nada além de soluções cujo centro é desde sempre a Economia, reduzindo o existir humano à eterna luta de classes ou à eterna competição do "livre" mercado. Não há outras propostas consistentes e críveis , pois todas as que surgem são mercadizadas ou ideologizadas - basta ver no que se transformaram as propostas de sustentabilidade, ecologia, aquecimento global, energia limpa, etc.  Se este livro me impeliu a meses de reflexão, não há como não recomendá-lo, esperando que sirva para outras pessoas refletirem.
Shin Dong faz palestras pelo mundo, narrando o que viveu no campo 14 e sua difícil adaptação ao mundo externo ao campo... espero que se algum dia ele venha ao Brasil, não seja impedido de falar, por suspeita de ser anti-norte-coreano (ELE EFETIVAMENTE O É) , ou de estar a soldo dos malditos ianques imperialistas. 


PS - Continuo com muitas aflições pululando em minha alma, não mitigadas pela reflexão. 








FUGA DO CAMPO 14 - BLAINE HARDEN -  EDITORA INTRÍNSECA -  230 PÁGINAS.




domingo, 1 de julho de 2012

AS IDEIAS TÊM CONSEQUÊNCIAS – RICHARD M. WEAVER

“Há razões para afirmar que o homem moderno tornou-se um imbecil moral”- Richard Weaver



Existem alguns livros que pela importância de sua temática e pelo talento argumentativo de seu autor, se tornam indutores de fortes reações por parte do leitor, revolvendo conteúdos que já haviam sido dados como pacificados. É aquele tipo de livro que nos faz ter a sensação de que o autor se projeta das páginas e se posta em nossa frente, iniciando um diálogo contundente, provocando-nos o tempo todo, nos obrigando a pensar e admitir hipóteses que normalmente mantemos fora de nossa tela de análise, por acreditarmos justamente no oposto.
Atualmente, procuro ser muito seletivo com aquilo que chamo de “livros diagnóstico”, que abundam nas prateleiras das lojas que vendem livros (as livrarias são cada vez mais raras) e que abrangem os mais variados assuntos, tentando dar a cada um deles uma visão definitiva, uma “fotografia em alta definição da realidade”. São livros que expressam impressões, opiniões calcadas na credibilidade ou celebridade do autor, não raro conquistada em outra área que não a abordada no livro, mas normalmente carente de documentos, estudos e fontes que demonstrem e embasem suas opiniões. Se isto não desqualifica necessariamente a obra, ao menos exige algum critério, sob pena de nos perdermos num mar de opiniões contraditórias, umas tão válidas ou inválidas quanto as outras.


RICHARD WEAVER
Richard Malcolm Weaver foi um intelectual americano que teve uma vida relativamente curta, 53 anos, mas marcou sua época com uma obra importante, sendo a mais impactante o clássico “Ideas Have Consequences”  de traço indiscutivelmente conservador, que expõe o declínio da civilização ocidental. Suas reflexões o levam a um diagnóstico bastante desalentador :  “Não existe termo apropriado para descrever a situação em que o homem se encontra agora, exceto a noção de “abismalidade”. Ele encontra-se num profundo e escuro abismo e não dispõe de nada que lhe permita erguer-se. Sua vida é uma prática sem teoria”.
Ora, não faltam autores e obras que se debruçam sobre esta noção de decadência à qual parece estarmos submetidos de maneira inexorável, mas Weaver apresenta, se não uma novidade, algo raro de se encontrar nos “livros diagnóstico” : uma visão otimista de que o mundo é inteligível ao homem e este declínio, é resultado de escolhas menos sábias que fizemos ao longo da história, que foram se acumulando, mas que, sobretudo, existem saídas para a humanidade.



O livro “As Ideias Têm Consequências”, foi publicado originariamente em 1948 e só o conheci através da tradução lançada no Brasil em março de 2012.  Contudo, o livro continua atual e já me atraiu fortemente pelo título, pois sinto-me vivendo numa época em que parece que esta noção, absolutamente óbvia, parece ser acintosamente ignorada. Basta acompanharmos as notícias do dia-a-dia para nos depararmos com a esquizofrenia do discurso de políticos, jornalistas, artistas, intelectuais, historiadores e demais agentes que possuem alguma voz na grande mídia. Mas não apenas isso : ouvimos as opiniões do cidadão comum em cada canto da cidade e raramente podemos identificar alguém que seja especialmente cuidadoso com aquilo que diz, profere, defende. 
As ideias levam às ações e estas à consequências que são mais ou menos óbvias, mas que certamente, se não podem ser antevistas a montante, torna-se um sinal grave de idiotia não reconhecê-las a jusante ! É impressionante, por exemplo, que alguém que se dedique a estudar minimamente as ideias que sustentam qualquer “pensamento revolucionário”, sobretudo os que se abateram sobre o século XX, não levar em conta o ordenamento de consequências lógicas destas ideias sobre o conjunto da humanidade, mesmo depois delas terem se mostrado desastrosas inúmeras vezes.


  
Esta esquizofrenia nos leva aos pseudo-intelectuais que acreditam nas ideias de Marx, Lênin, Stalin, Mao, Gramsci, Fidel, mas não nas consequências que se abateram no mundo, deixando um rastro de mais de 120 milhões de mortos, como se fosse possível simplesmente amputar a ideia de suas consequências indesejadas, mantendo a ideologia como algo intocável em busca de um eterno devir.



Mas não é necessário nem desejável particularizar este fenômeno ao pensamento revolucionário ! O pensamento reacionário e conservador também produz seu montante de aberrações que são analisadas de maneira igualmente esquizofrênica, pauperizando o sentido de nossas vidas através da ficção monetarista, o consumismo e o capital que nos escraviza até o túmulo – nossa última morada, pela qual também teremos que pagar. 




Sob a bandeira da liberdade econômica, do livre arbítrio , do conforto e do crescimento contínuo, deixa igualmente  sua esteira de milhões de mortos, ou pior, mantém-nos vivos para nos explorar até o último suspiro, quando seremos descartados como pilhas desgastadas do sistema, e como tais, ainda poderemos render alguns tostões aos viventes, quando nossos ossos ou cinzas forem entregues numa urna a nossos familiares.



O livro de Weaver começa com uma crítica ao nominalismo do filósofo Guilherme de Ockham (séc. XIV) que pôs fim à ideia da existência de “universais”, ou seja, princípios que regem a natureza, incluindo a nós mesmos e que são percebidos pelo intelecto, substituindo-os pela realidade percebida exclusivamente pelos sentidos, rebaixando assim a dimensão do próprio ser humano àquilo que ele pode perceber, desconsiderando sua intuição e sua intelecção da realidade. Não é preciso dizer que tal idéia ganhou uma força ainda mais avassaladora a partir do Iluminismo e à abdicação do pensamento transcendental do humano em favor do racionalismo científico, que ao invés de lhe dar sentido, antes rouba-o, colocando no lugar o culto ao egoísmo e a ruptura da interligação com os outros indivíduos e com algo que transcenda seu próprio umbigo : É o princípio do fim de qualquer padrão moral.


GUILHERME (WILLIAM)  DE OCKHAN
Weaver localiza historicamente o “desvio” que a humanidade tomou a partir do momento em que passou a acreditar exclusivamente nos sentidos e consequentemente no materialismo e cientificismo para guiar sua vida : “ ...o homem não deveria guiar-se por uma análise científica que apele à impotência moral” .
Sob a égide da Liberdade e da Democracia, a humanidade vem cavando seu túmulo existencial, não obstante suas necessidades “espirituais” continuarem tão presentes como sempre : o culto ao Catolicismo deslocado para um sem número de denominações religiosas, seitas gnósticas e outras tantas crenças atestam que o humano não prescinde da necessidade de crer em algo além de si, ainda que, em situações extremas que beiram a demência, acaba acreditando no “si mesmo” como princípio organizador do universo.  Como disse brilhantemente G. K. Chesterton – “o problema de quem não acredita em Deus, é que ele tende a acreditar em todo o resto”  -  significa que um indivíduo que se diz ateu e ainda assim acredita num ideal político como sendo a  expressão da verdade, ou que um filósofo ou líder pode deter a verdade última a ponto de definir o futuro da história humana, ou no mercado como regulador universal das relações humanas, ou que uma bolsa de tal grife pode conferir atributos qualitativos a quem a usa, não é um ateu de forma alguma , apenas cultua outras coisas. 




Minha grande dúvida, neste sentido, é porque não cultuamos algo como a Ética Humana, cuidamos primeiro da ecologia do ser humano, de sua psicologia atormentada e doentia, antes de falarmos em ecossistemas, religiões, economia verde ou ideologias de qualquer ordem. Deixamos de perceber algo que é gritante : nos maltratamos e maltratamos o outro em nome de um racionalismo imbecil, que não se sustenta para além de duas ou três perguntas - ainda que estas perguntas jamais sejam feitas. Afinal, qual foi a última vez que você se perguntou e tentou responder com sinceridade, se havia uma outra maneira melhor de agir do que aquela pela qual você optou ?
Neste sentido, Weaver aponta : “Parece-me que o mundo está agora, mais do que nunca, dominado pelos deuses da massa e da velocidade, e que o culto a eles pode conduzir apenas à diminuição dos padrões, à adulteração da qualidade e, em geral, à perda das coisas que são essenciais à vida da civilidade e da cultura. A tendência a olhar com suspeita para a excelência – tanto intelectual quanto moral – como algo “anti-democrático” não mostra sinais de diminuição.
O livro de Weaver não é muito extenso, mas é bastante abrangente se considerarmos a pretensão da obra. Seu texto passa pela organização social que tende cada vez mais à verticalização, a perda do sentido e do prazer do trabalho que foi transformado em sacrifício, a amputação das lições do passado, o igualitarismo que ignora o mérito, a pasteurização equivocada do talento humano que transforma a sociedade em massa e a substituição dos preceitos morais pelo cientificismo amoral. Ainda nos mostra a evolução da substituição de qualquer forma de transcendência ou ordem universal pelo utilitarismo e o pragmatismo e do talento artístico pela liberdade impositiva de todas as formas de expressão. Tratam-se de pontos polêmicos, que suscitam muitas divergências, como suscitaram em mim, mas é um excelente tratado para reflexão e sua atualidade depois de 64 anos do lançamento editorial, assim o demonstra.

 
Em vários capítulos, peguei-me em franca discussão com o autor, SUBLINHANDO-O e  apontando meus argumentos, sobretudo pelo fato de que o próprio desvio das “escolhas sábias da humanidade” é ele mesmo não apenas uma possibilidade, mas uma consequência das mesmas ideias das quais se desviaram, posto que se fossem inequívocas, não haveria força suficiente para que os desvios se consolidassem. Não podemos nos esquecer que os valores transcendentais e as organizações hierárquicas do passado, escravizaram e usurparam milhões de pessoas, comprometendo sua própria legitimidade enquanto estrutura ideal da sociedade humana. Contudo, é impossível negar o argumento central do livro : As ideias, as escolhas e as ações têm consequências e é preguiça, falta de inteligência ou desonestidade, deixar de reconhecer as relações de causa e efeito entre elas. 








AS IDEIAS TÊM CONSEQUÊNCIAS - RICHARD M. WEAVER - É REALIZAÇÕES EDITORA - 207 PÁGINAS 


Duas observações : 1) Infelizmente esta edição contém muitos erros bobos de revisão, omissão de letras e alguns mais graves, o que me surpreende por não ser comum desta editora, que prima pela qualidade de seus livros. 
2) A escolha da capa, em contrapartida, foi primorosa ! Difícil imaginar melhor escolha do que esta pintura de Brueguel para envolver esta obra de Weaver e sua temática, motivo pelo qual a reproduzo abaixo de forma integral.


BLIND LEADING THE BLIND - (1568) - PIETRE BRUEGEL 









segunda-feira, 11 de junho de 2012

FOME - KNUT HAMSUN

"Você sabe realmente o que é fome?"





Você acha que tem problemas ? Já passou fome alguma vez na vida ? Não aquela fome que dá porque naquele dia não almoçamos por qualquer razão ou aquela sensação de insatisfação que dá depois de algum tempo de uma refeição pobre de carboidratos e proteínas. Também não me refiro àquela fome assassina, terminal, típica das populações que se encontram sob “genocídio estático”, como alguns países africanos, ou dos “genocídios ativos” como nos casos de campos de concentração ou cercos como o da Ucrânia no começo do século XX, ou ainda das populações que ficaram privadas de alimentos por ocasião de alguma catástrofe natural.


Refiro-me a um tipo específico de fome, fruto de um estado de pobreza extrema que se não chega a matar,  é persistente, diária. Uma carência constante que faz com que nossa mente deambule entre estados de bipolaridade induzida – no começo da fome, nos tornamos mais alertas, pensamentos ágeis e um tanto paranóicos, nossos movimentos são mais rápidos e aparentemente nos encontramos num estado de prontidão física e intelectual ímpares. Com o passar do tempo, nossa energia cai, o estômago começa a doer de fato, se contraindo sobre o vazio num espasmo desconfortável. Nesta fase, nossos pensamentos já não são tão ágeis como na fase anterior, mas começam a se focar em fantasias específicas como um bom prato de comida : nos tornamos quase delirantes enquanto nosso desconforto físico vai aumentando. Mais algum tempo sem alimento, o desconforto físico vai diminuindo e nossos movimentos vão ficando mais lentos, econômicos e nosso estado mental sofre um fenômeno que eu classifico como “deslocamento” – excelente para experiências transcendentais como meditação. Quando finalmente conseguimos ingerir algo, dependendo de quão substancioso é esse algo, podemos aprofundar a letargia de nosso corpo que estará completamente envolvido em processar o alimento, ou voltarmos para o estado de prontidão paranóica quase que imediatamente. Este último caso, obviamente, é aquele em que nossa refeição é absurdamente restrita, que nos afasta por mais alguns centímetros da beirada abismal da inanição, mas não nos deixa satisfeitos nem seguros. A fome constante não muda apenas o corpo de uma pessoa, mas também sua mente e a repetição deste estado nos leva a uma nova relação com a realidade – nos tornamos mais resistentes e com idéias mais fixas sobre o como as coisas devem funcionar, ainda que estas idéias sejam, na maioria das vezes, delirantes, inconsistentes aos olhos de um ser devida e regularmente alimentado.


Na minha visão, é sobre esta fome, da qual ele próprio padeceu, que Knut Hamsun constrói seu romance “Fome”.  Tudo indica que Hamsun fez da personagem principal e quase única da trama, seu alter ego perfeito, que viveu a trama exatamente como ele teria vivido numa situação análoga - e de certa forma viveu, pois há algumas semelhanças entre a trajetória do  protagonista e a do próprio autor. Segundo sua biografia, Hamsun foi estivador, lenhador, marinheiro, sapateiro, condutor de bonde, jornalista, cuidador de frangos e escritor, ganhador do Premio Nobel de 1920. Conheceu de perto a vida errante e solitária em busca de seu sustento. O escritor norueguês foi controverso em tudo que fez e tendo horror à cultura ocidental, chegou a nutrir simpatia pela Alemanha nazista e embora jamais tenha se filiado ao partido, sua idéias a respeito dos nazistas o levaram à prisão em 1947. Morreu aos 92 anos, deixando uma obra contundente, com personagens marcantes. Dizem que deixou este mundo "sem remorsos". 

KNUT HAMSUN

Narrado em primeira pessoa, a história se desdobra em 1890, com o protagonista percorrendo a esmo as ruas de Cristiania (atualmente Oslo) na Noruega, munido apenas de suas vestes rotas, um maço de papéis que ele chama de caderno e um toco de lápis, com o qual tenta escrever um artigo que possa ser vendido a algum jornal, com o objetivo de obter recursos para pagar o aluguel do paupérrimo quarto que ocupa e comer um prato de comida, uma vez que já nem se lembra qual foi a última vez que comeu. No filme homólogo, baseado no romance de Hamsun, o protagonista recebe o nome de Pontus, interpretado pelo magnífico Per Oscarsson,  mas no livro, seu verdadeiro nome não é declinado.


PER OSCARSSON


O contraste de sua aparência lastimável com a altivez de suas atitudes, nos faz lembrar da obra de Cervantes – uma espécie de Quixote urbano, solitário, sem ajudante ou cavalo e portador de uma nobreza e um senso moral totalmente incompatíveis com sua desesperadora condição. Seu toco de lápis é sua lança e seu caderno o escudo com os quais tenta enfrentar a dura realidade que o cerca, através de uma visão e uma ética muito próprias. Numa passagem, vemos o já despossuído escritor numa loja de penhores, colocando seu desgastado colete no prego, para obter umas moedas não para fazer o que seria uma mais que tardia refeição, mas para dar de esmola a um mendigo coxo ! Seguimos o desespero contido (que para o leitor se torna ainda mais angustiante) do protagonista ao constatar que seu toco de lápis ficara no bolso do colete, recém empenhado e seus esforços para recuperá-lo de forma digna.


A trama segue com a luta cotidiana deste arremedo de pessoa que tenta por toda sorte, manter sua dignidade e sua sanidade contra um organismo que o açoita de dentro para fora, reclamando algum alimento. A falta de dinheiro e portanto de abrigo e comida, transtornam sua mente, fazendo-a oscilar entre a crueza de sua realidade imediata e os devaneios de uma vida palaciana, requintada, junto com sua Iaiáli, nome dado por ele a uma jovem que conheceu de passagem e com quem ensaiou um romance fracassado. Ele necessita de sua mente para escrever os artigos que lhe rendem algumas parcas coroas para se alimentar, mas por falta de alimento, sua mente mal consegue se concentrar fechando um perverso círculo vicioso.




Ele sofre não apenas por sua carência, mas pela impossibilidade de auxiliar outras pessoas que encontra pelo caminho, tão necessitadas quanto ele, como se tivesse para com elas, uma dívida irresgatável. Em vários pontos de sua trajetória, está convencido de que Deus o está destruindo sistemática e deliberadamente, pois parece que o mundo inteiro, suas bobagens, regras e burocracias não estão minimamente preocupadas com a emergência de sua situação. Em algum momento do livro ele registra :   “ Eu observava muito bem que, se jejuasse durante um período bastante longo, era como se meus miolos me escorressem suavemente do cérebro, esvaziando-o. A cabeça se tornava leve, como que ausente; já não lhe sentia o peso sobre os ombros; e, se olhava para alguém, tinha a sensação de que meus olhos estavam fixos, arregalados.”


Penso que a leitura deste livro nos faz rever uma perspectiva humana, da qual a maioria que o lê, se encontra afastada ou dela jamais se aproximou : como nossos pensamentos e necessidades cotidianas são absolutamente enganadoras – um revestimento da miserabilidade de nossas necessidades básicas, que começa a cair apenas algumas horas depois de sermos privados de alimento, água ou sono .    É absolutamente incrível como um ser bem alimentado, hidratado e bem dormido, pode imaginar as mais complexas relações cósmicas, construir planos, fazer arte, construir significados e erigir impérios em nome de seus ideais, de seus pensamentos, e mais incrível ainda, ver todos estes constructos se desmontarem, os edifícios de significados derreterem como bonecos de neve expostos ao sol de verão, a razão se toldar e o discurso se deteriorar em fábulas alucinatórias diante da fome contumaz . Uma pessoa bem alimentada é capaz de pensar em programas sociais, abrigos e toda a sorte de soluções para os desvalidos, mas parece ser incapaz de perceber e resolver a situação de um ser que está com fome concreta, bem à sua frente. Para os bem alimentados, a pobreza extrema é um conceito, não uma pessoa que necessita de alimento imediatamente! 
Apesar da dureza do texto de Hamsun, a personagem criada por ele, é resistente e goza de uma liberdade inacessível para a maioria das pessoas que possuem coisas e são possuídas por elas. A total falta de posses , o imediatismo de suas preocupações básicas e a falta de vínculos, permitem ao protagonista mover-se pela vida e pelo mundo como um aventureiro, único senhor de seu próprio destino.  


FOME - KNUT HAMSUN - GERAÇÃO EDITORIAL - 171 PÁGINAS - Destaque para a tradução primorosa de Carlos Drummond de Andrade.


FOME (SULT) O FILME
O filme baseado nesta obra, foi lançado em 1966 com a interpretação magistral de Per Oscarsson, que lhe rendeu o prêmio de melhor ator em Cannes naquele ano. Lançado recentemente no Brasil pela Platina Filmes, o DVD conta com excelentes extras : o depoimento do diretor Henning Carlsen, e um bate papo entre a neta de Hamsun - Regine Hamsun e o escritor Paul Auster, acerca da obra. 




domingo, 27 de maio de 2012

HHhH – HIMMLERS HIRN heiβt HEYDRICH – LAURENT BINET


“Vocês deviam escolher entre a guerra e a desonra. Escolheram a desonra. E terão a guerra” – Winston Churchill


Existem apenas duas coisas que me impressionam tão negativamente quanto o nazismo :

1 - Como tanta gente pôde compactuar por tanto tempo com as piores atrocidades, na esperança de que estas não as atingisse de forma alguma – É como aquele pensamento infantil – Se cubro os olhos e finjo que não vejo, a ameaça desaparece.
2 - Como, apesar da candência ainda atual deste que é um dos piores episódios de barbárie concentrada da humanidade (a farta literatura que ainda é produzida sobre o tema demonstra isso),  muitos ainda o ignoram ou tem um interesse pífio, de "ouvir falar" e fazem dele apenas sinônimo daquilo que não gostam, ou que acham impositivo ou autocrático a ponto de chamar qualquer medida de restrição da qual não gostam, pura e simplesmente  de “nazista”.

Infelizmente, estas duas facetas humanas, covardia travestida de esperança e ignorância fantasiada de saber, não se aplicam apenas ao nazismo, mas à maioria das tragédias humanas, perpetradas pelos próprios humanos. Confesso que para ter uma idéia, que considero apenas razoável deste fenômeno, tenho estudado-o por décadas, através de dezenas de livros, filmes e documentários das mais diversas fontes e não canso de surpreender-me sobre o quanto sei pouco sobre o tema.


LAURENT BINET

Fiquei feliz de encontrar um escritor jovem, nascido em 1972, capaz de se interessar pela história a ponto de escrever um episódio dela de forma romanceada, mas buscando todas as fontes documentais, fotográficas,  linguísticas, testemunhais e locais para, apesar do lirismo que por vez trespassa seu texto, ser o mais fiel possível aos fatos.  Este foi o trabalho que o francês Laurent Binet construiu em seu ótimo romance HHhH, que significa "O cérebro de Himmler chama-se Heydrich", lançado no  Brasil no final de abril deste ano. O livro ganhou grande reconhecimento na Europa e lhe rendeu o prestigiado prêmio Goncourt de 2010.
Uma das características que chama a atenção neste romance é a trama tecida pelo autor, que imiscui a si mesmo em diversos trechos, relatando seus pensamentos e sensações no transcorrer de sua pesquisa, na manipulação de fotos e documentos ou de passagem pelos cenários (já muito modificados) onde tudo ocorreu e na própria escrita de cada capítulo. 


Ele divide com o leitor suas angústias e inseguranças de preencher lacunas da história com licenciosidades de sua imaginação ao mesmo tempo em que se percebe sua entrega de corpo e alma à tragédia que marca especificamente este episódio da Segunda Guerra Mundial.


REINHARD HEYDRICH

O romance narra os bastidores da Operação Antropoide - o atentado contra a “Besta Loira”, o “Açougueiro” ou o “Carrasco de Praga”, codinomes ostentados com orgulho pelo mais fiel e temido membro do Partido Nazista  e número 2 na hierarquia de comando da SS – Reinhard Heydrich em maio de 1942, bem como os eventos que o antecederam e que o sucederam.  




Como bem descreve  Binet, o atentado só foi possível  graças a colaboração de um punhado de heróis anônimos que resistiam à ocupação nazista e que deram o suporte necessário aos dois paraquedistas tchecos  Jan Kubis e Jozef Gabcik, que apoiados por um terceiro paraquedista (Valcik) que não estava originariamente na missão, realizaram o atentado em plena luz do dia, numa curva  de uma rua de Holesovice em Praga.

KUBIS E GABCIK


Como conseqüência direta deste atentado que acabou por ser bem sucedido, pois Heydrich morreu dias depois por septicemia, muitos tchecos foram sumariamente executados. A aldeia de Lídice, nos arredores de Praga, teve sua população quase integralmente dizimada numa das mais brutais ações da SS, apenas porque havia uma suspeita de que um dos responsáveis pelo atentado tivesse alguma relação com a aldeia . Não obstante todo o sacrifício do povo tchecoslovaco, os paraquedistas heróis acabaram por ser traídos pelo também soldado tcheco, Karel Curda.


MONUMENTO ÀS CRIANÇAS MORTAS EM LÍDICE

É uma história de reparação : O heroísmo de poucos resgatando os resultados nefastos da covardia de muitos -  A tibiedade da política inglesa nas mãos de Chamberlain e o servilismo do marechal francês Philippe Pétain, encorajaram Hitler a seguir com seus planos de expansão do espaço vital germânico, uma vez que conseguiu a anexação da Áustria e da região dos Sudetos (fronteiriços à então Tchecoslováquia) sem a necessidade de disparar um único tiro  : apenas com sua máquina infernal de propaganda e intimidação. Após a anexação dos Sudetos o então presidente da Tchecoslováquia, Edvard Benes renunciou e se exilou em Londres, liderando o movimento de libertação do país. Daí para a invasão total da Tchecoslováquia foi um passo e a designação do competente e meticuloso Heydrich como Protektor de Praga, fazendo de seu presidente Hácha, sucessor de Benes, apenas mais um dos fantoches a serviço do Reich alemão. Heydrich era um dos mais dedicados nazistas a conduzir os planos da "Solução Final", junto com seu assecla Eichmann. Benes então convoca Gabcik e Kubis para a Operação Antropoide, que consistiu em saltar de paraquedas sobre a Tchecoslováquia e empreender a missão suicida de assassinar o Obergruppenfüher Heydrich.



A figura de Heydrich, bem como sua trajetória até os mais altos escalões da SS, como braço e cérebro de Himmler, é bem esmiuçada por Binet. Heydrich encarnava tão bem o ideal nazista tanto na concepção quanto na ação, que chegava intimidar os próprios nazistas – a relação dele com Himmler era de cautela de ambas as partes.



Binet se emociona com a história que conta e demonstra isto o tempo todo e quando narra o episódio do atentado propriamente dito, o faz em descrição cinematográfica, como se pudesse suspender a narrativa, suprimir-lhe o tempo real numa espécie de câmera lenta muito bem executada.  Esta emoção que Binet coloca em seu livro, nos transforma em cúmplices de Gabcik e Kubis – corremos com eles em sua fuga tresloucada logo após o atentado no qual tudo o que poderia dar de errado, deu, exceto que acabou por ser bem sucedido ! Escondemo-nos com eles na cripta da Igreja de São Carlos Borromeu (hoje denominada de Igreja de São Cirilo e São Metódio) e resistimos ao ataque por todos os lados de mais de oitocentos soldados da SS. 
Interessante observar que após o episódio do massacre de Lídice, o mundo "tomou conhecimento" das atrocidades nazistas, não mais pela conversa fiada de seus medrosos governantes, mas pelas imagens e pelas notícias enviadas diretamente do palco da tragédia : a máquina de propaganda nazista começa a ruir.



Gostaria de que mais escritores romancistas se dispusessem a escrever sobre capítulos específicos da história : é muito mais instrutivo entrar em sintonia com as emoções do autor em cada passagem do que se deparar com a narrativa seca e caudalosa da maioria dos historiadores.





HHhH - LAURENT BINET - COMPANHIA DAS LETRAS - 337 PÁGINAS.