segunda-feira, 11 de março de 2013


FUGA DO CAMPO 14 – BLAINE HARDEN      

PORQUE PARECE QUE NUNCA APRENDEMOS NADA ?


VISUALIZAÇÃO POR SATÉLITE DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO DA CORÉIA DO NORTE


FUGINDO DE MIM MESMO


Jamais pretendi fazer qualquer coisa próxima à crítica literária, primeiro porque não me sinto capacitado para tanto, segundo porque já existem inúmeros blogs e sites que se dedicam a resenhar e criticar livros e terceiro, e mais importante – os comentários que faço são sobre mim mesmo, através de obras de autores que de certa forma me tocaram e que causaram uma reação que clama ser expressa. Também nunca foi minha intenção declinar, a não ser incidentalmente, posições políticas de qualquer natureza, exceto minha especial predileção pela liberdade e repúdio por qualquer tipo de ditadura. O que clama ser expresso não é ideológico mas humano, demasiadamente humano : são as dores da reflexão sincera, sem a necessidade da certeza do aparato lógico-técnico do que é certo ou errado. Estou  farto de ideologias e hoje eu poderia dizer ao Cazuza: – Não ! Não quero uma ideologia pra viver ! Nosso grande drama não é a morte das ideologias, mas daquele "garoto que ia mudar o mundo" que deixou de acreditar no seu sonho e senso de justiça e passou a acreditar em alguma ideologia que lhe foi vendida, que lhe capturou o sentimento de mudança do peito e lhe imprimiu idéias erradas, sempre erradas. Quando morre a ideologia, e elas sempre morrem, o "garoto que ia mudar o mundo" fica perdido, não tem mais referencial interno, não confia mais em seus sentidos e nada mais resta senão frequentar as festas do "Grand Monde" e permanecer em cima do muro.  Não acho que a solução para esta decepção seja uma nova ideologia : Os hippies dos anos 60 e 70 são os principais atores de um mundo cuja ideologia é o mercado de ideologias, os oprimidos pelas ditaduras de antanho são os opressores atuais, ávidos do poder que antes combatiam. 
Aí eu pergunto... Você já conversou com um idoso ? Refiro-me a um idoso que não esteja ainda cumprindo um papel no "Grand Monde", que já abriu mão de sua participação no teatro social. Ouviu-o ? Ouviu-o de verdade ? Perguntou o que ele pensa de suas ideologias de juventude em comparação com sua visão de mundo atual, com real interesse em compreender sua resposta ? 
Eu vivo fazendo isso... e pelas respostas que ouço, vejo o quanto somos enganados em nossos anos mais produtivos. Deixamos para trás aquilo que era mais importante, mais valioso - uma mente aberta, sem malícia, ávida da vida e do mundo, capaz de extrair puro prazer da simplicidade - trocando tudo isso por uma ideologia e por heróis de papelão, que podem ser governantes, executivos, artistas ou qualquer outra coisa que nos pareça GRANDE o suficiente para nossos sonhos...
O problema é que nossos sonhos só cabem em nós mesmos, sejam eles do tamanho que forem. Por esta razão que repito : Não quero uma ideologia :   Quero minhas memórias de menino que nem sabia o que significava a palavra ideologia. 





Cheguei à conclusão que não se sabe com certeza o que é certo ou errado, apenas se sente e se não é possível sentir isso, então nada do que é pensado tem grande valor, além do retórico. O que acontece é que desde cedo somos instados a acreditar cada vez menos naquilo que sentimos e cada vez mais em alguma ideologia. Somos cooptados pela retórica daqueles que arrogam a si o poder de resolver os problemas da humanidade, desde a espiritualidade até a fome.




Foi por esta razão que ao ler FUGA DO CAMPO 14 , de Blaine Harden, dei um tempo e parei de postar minhas impressões. Precisava digerir vários "desconfortos" que se  agitavam em minha alma.  Fiquei me perguntando porque minha aparente e recente predileção por relatos de dor e sofrimento causados pela privação da liberdade, pelo cárcere algoz dos regimes totalitários, pelas tão repetidas histórias de genocídios e assassinatos em massa. Comecei a pensar porque a partir do século XX, quando os relatos tornaram-se mais e mais públicos a partir de filmes, livros e depoimentos, continuamos calados e inertes frente à eterna capacidade dos humanos em justificar seus delírios de poder. Penso que foi Benedetto Croce quem disse que a “História da Humanidade é a História da liberdade humana”, e o eminente historiador não está errado,  mas talvez o mais adequado seria “A História da Humanidade é a História da dominação de uns sobre os outros”, ou justamente a “História da Ameaça à liberdade humana”, presente em cada segundo de nossa história conhecida – a liberdade do cidadão comum está sempre sob a espada de Dâmocles, seja em tempos de guerra ou de paz, de fartura ou miséria. Talvez tanto Hobbes quanto Rosseau estejam errados : não somos essencialmente maus nem tampouco bons selvagens corrompidos pela sociedade, mas  essencialmente ingênuos, pois esperamos que as soluções venham sempre de fora, do topo de uma consciência que nos é superior. Dependemos eternamente dos grandes pais – ou os Deuses ou os Líderes e em muitos casos, Deuses representados por Líderes!
Vivemos trocando de "chefe" e mesmo quando achamos que não servimos a chefe nenhum, estamos a serviço de nossas crenças, muitas vezes uma verdadeira colcha de retalhos de fragmentos do que nos foi vendido ao longo da vida.




Lembrei-me das desculpas do Ocidente frente ao holocausto judeu – “Nós não sabíamos” – e os recentes massacres em Ruanda, Timor Leste, Darfur, Chechênia, Bósnia ,  sobre os quais o mundo inteiro sabia e se calou tão covarde e absurdamente como antes. Comecei a pensar que a desgraça humana, seus milhares de holocaustos cotidianos só servem para alimentar a indústria midiática : ganha-se dinheiro expondo para os humanos seus horrores, através de notícias, filmes, fotografias, livros, documentários. A espetacularização tão bem descrita por Debord para caracterizar a insanidade capitalista, torna irreal o que foi ato, o que custou sangue e carne, desespero e agonia, transformando a triste história da dominação humana, de uns sobre os outros, em meros folhetins midiáticos, novelas nas quais as vítimas não se levantam nem batem a poeira da roupa após a apresentação.   Se Debord tivesse prestado mais atenção à Gramsci, talvez ampliasse seus conceitos também à insanidade socialista : a espetacularização é uma arma de alienação, não da "burguesia", mas do poder - QUALQUER PODER ! 
Enquanto isso, o poder aboletado reescreve a história nos livros escolares oficiais, a seu bel prazer, “re-significando” o passado à luz da mentirosa revolução das massas, capitaneada por átomos sociais de muito pouca massa cinzenta, mas com o apetite de um buraco negro, devoradores de massas  humanas em troca do vazio retórico.




KIM -II- SUNG - O GRANDE LÍDER
FUNDADOR DA DINASTIA QUE FAZ DA
CORÉIA DO NORTE O QUINTAL DE SEU
PALÁCIO
MAO - O GRANDE TIMONEIRO















Para que serve o conhecimento, se somos incapazes de evitar aquilo que já condenamos ? O que justifica Cuba e seu regime opressor, seus 100 mil mortos políticos e os prisioneiros que foram esquecidos pelo mundo e o que justifica a existência atual de campos de concentração na Coréia do Norte, como o tal campo 14 do qual Shin Dong conseguiu fugir arrastando-se sobre  o cadáver de seu companheiro que lhe serviu de proteção contra a cerca de arame farpado. Isso aconteceu em 2005 e neste exato momento, milhares de norte-coreanos não desfrutam da mesma “sorte” que Shin Dong e continuam entregando pais, mães e irmãos aos guardas, acusando-os de qualquer deslize, real ou imaginário, apenas para receberem um punhado de arroz ou uma migalha qualquer da mesa de seus opressores.




Estamos absolutamente sensíveis ao que é dito, a ponto de achar mais grave uma piada de mal gosto do que um latrocínio, de demonizar qualquer opinião que não esteja inserida na palavra de ordem das massas e suas bandeiras políticas e a ponto de não permitir, em nome da liberdade, que as pessoas expressem livremente suas opiniões. A IDEOLOGIA TORNOU-SE MAIS IMPORTANTE QUE A REALIDADE ! 





Não vejo manifestações pela liberdade, mas pela imposição ou supressão de idéias. 
Vejo gente defendendo a ditadura de esquerda ou de direita, mas não vejo muita gente preocupada com a ditadura que sempre se segue a um processo de Wellfare State implantado por um plano de poder qualquer.


INTERROGATÓRIO NOS PORÕES NORTE-COREANOS

Assim como os nossos brilhantes jovens militantes brasileiros disseram na recente visita da blogueira Yoani Sánchez – “Os cubanos não reclamam!!!”, podemos dizer o mesmo dos norte-coreanos – não se vê nenhum norte coreano reclamando de nada... porque será? Só ouvimos falar, pela mídia, dos testes nucleares que o herdeiro da loucura familiar assistida pela corja de sub-comandantes que gozam de uma vida absolutamente superior a da população e para os quais bajular um moleque ungido pela dinastia é altamente vantajoso. Diga-se de passagem, nem os russos e ucranianos reclamaram nada ao longo de décadas e os crimes cometidos em nome do "Regime do Povo", ainda estão brotando dos arquivos recém abertos da extinta URSS, ainda que os da temível KGB jamais venham a público. 
O mesmo mundo que bajula Barack Obama o presidente da nação mais poderosa da terra, acusa e hostiliza a tal blogueira (por quem não tenho nenhuma simpatia em especial) de ser agente da CIA, como se Obama e CIA fossem coisas absolutamente distintas e o primeiro não fosse o comandante em chefe da segunda. Não querem dialogar com a blogueira, nem expor suas discordâncias, mas simplesmente impedi-la de falar, de dar entrevistas de expor suas opiniões – não importa se a serviço da CIA, de Fidel ou dela mesma.

MANIFESTAÇÕES LEGÍTIMAS E DEMOCRÁTICAS, NÃO FOSSE O FATO
DA BLOGUEIRA TER CANCELADO VÁRIAS ENTREVISTAS PORQUE
SIMPLESMENTE NÃO A DEIXAVAM FALAR.
O mesmo mundo que expulsa o diretor de cinema Lars Von Trier do festival de Cannes, porque ele tentou expressar que compreendia Hitler (sabe-se lá o que ele ia dizer e acabou não dizendo), é absolutamente conivente, ou no mínimo silente, em relação aos atualíssimos campos de concentração e extermínio da Coréia do Norte e com os filhotes da ditadura socialista que ainda assolam países pouco desenvolvidos, sem noção de história, petrificados pela poesia de um filho do idealismo alemão (mais um, como Hitler) que dizia ele mesmo não acreditar no que escrevia. 
Mais uma vez o ranço ideológico fazendo as vezes de fatos - não há nada de errado com as ações de justiça social e distribuição mais equitativa de renda, e com políticas promotoras de cidadania. O que sempre dá errado é a criação de um monstro estatal que se arbitra o poder supremo através da glorificação e do culto à personalidade, não importa qual a bandeira que empunhe.


PROVAVELMENTE SER O QUINTAL DA CHINA COMUNO-CAPITALISTA
 TEM SUAS VANTAGENS

Como podemos permitir que existam regimes como os da Coréia do Norte ? Como conseguimos ser esquizofrênicos a ponto de cindir a realidade entre o que pensamos e o que vivemos ? Como podemos ainda permitir e lustrar o ego de caudilhos, fazendo vistas grossas à sua retórica populista que ao mesmo tempo que estende a mão aos mais necessitados, cobra devoção e não tolera qualquer tipo de discordância ou oposição ?




O livro não é excepcional e jamais se tornará um clássico. Trata-se de um livro simples, uma espécie de relato jornalístico que o autor faz a partir de uma série de entrevistas realizadas com Shin Dong – hyuk, um sobrevivente que nasceu em cresceu num campo de concentração da Coréia do Norte, o campo 14, ao norte da capital Pyongyang, destinado aos prisioneiros considerados irredimíveis, até sua fuga espetacular em 2005, aos 23 anos.   
Shin Dong-hyuk nasceu por uma concessão dos guardas do campo de concentração que permitem o intercurso sexual entre prisioneiros desconhecidos, como um prêmio, sobretudo à delação de inimigos do regime norte-coreano ou daqueles que infringirem alguma das dez leis de conduta do campo 14, que se resumem em :

1 - Não tente fugir.
2 - É proibida a reunião de mais de dois prisioneiros.
3 - Não furte.
4 - Os guardas devem ser obedecidos de maneira incondicional.
5 - Qualquer pessoa que veja um fugitivo ou pessoa suspeita deve denunciá-lo prontamente.
6 - Os prisioneiros devem se vigiar uns aos outros e denunciar qualquer comportamento suspeito.
7 - Os prisioneiros devem mais que cumprir a tarefa que lhes é designada a cada dia.
8 - Fora do local de trabalho, não deve haver nenhuma convivência entre sexos por razões pessoais.
9 - Os prisioneiros devem se arrepender sinceramente de seus erros.
10 - Prisioneiros que violam as leis e regulamentos do campo serão fuzilados imediatamente.






DESENHOS DE SHIN DE SUAS MEMÓRIAS DO CAMPO 14
SHIN DONG 




















Shin aprendeu esta lição junto com a fala e seu instinto de sobrevivência foi tão instigado pelos maus-tratos e castigos, que tornou-se absolutamente natural denunciar sua própria mãe e irmão, entregando-os à morte, às quais teve que assistir e pelas quais não pôde lamentar, pois não sabia o que era compaixão ou culpa. Mas quando, aos 23 anos, Shin conseguiu fugir, com seu código de conduta bárbaro, teve que enfrentar um desafio ainda maior – a estranheza de um mundo em que se falava de amor, compaixão, culpa e responsabilidade, palavras para as quais não havia nele quaisquer referenciais, mas que também vive mergulhado em ambiguidades  onde o bem e o mal se misturam por vezes de maneira confusa. Contudo suas memórias o condenavam e rapidamente ele tomou consciência de seus atos, mesmo com o apoio de pessoas que se sensibilizaram com sua história, mesmo conhecendo uma pessoa que finalmente poderia amá-lo sem medo.  Como relato jornalístico, o livro é conciso e dá uma panorâmica geral sobre a Dinastia Kim que estrangula a vida dos norte-coreanos com mão de ferro, mas também dá uma visão de sua antítese - a Coréia do Sul, que aderiu a um governo liberal, ao estilo Ocidental, porém com uma competitividade incitada pelo mercado que torna este povo tão paranoico em relação à sua produtividade, que no final do expediente, após um dia intenso de trabalho... simplesmente não conseguem ir para casa.  

" Os sul-coreanos trabalham mais, dormem menos e se matam numa taxa maior que os cidadãos de qualquer outro país desenvolvido segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), um grupo que apoia o crescimento econômico sustentável em 29 países ricos " - pág. 190 



CORÉIA DO SUL - A MÃO DO MERCADO PODE SER INVISÍVEL
MAS PESA TANTO QUANTO A DE UM DITADOR
É absolutamente incrível a tendência do humano à servidão - não importa se a um déspota ou a uma imagem criada pelo mercado que nos diz que a busca da felicidade é uma obrigação e que esta felicidade está necessariamente vinculada ao que você pode adquirir. Parece que não conseguimos enxergar nada além de soluções cujo centro é desde sempre a Economia, reduzindo o existir humano à eterna luta de classes ou à eterna competição do "livre" mercado. Não há outras propostas consistentes e críveis , pois todas as que surgem são mercadizadas ou ideologizadas - basta ver no que se transformaram as propostas de sustentabilidade, ecologia, aquecimento global, energia limpa, etc.  Se este livro me impeliu a meses de reflexão, não há como não recomendá-lo, esperando que sirva para outras pessoas refletirem.
Shin Dong faz palestras pelo mundo, narrando o que viveu no campo 14 e sua difícil adaptação ao mundo externo ao campo... espero que se algum dia ele venha ao Brasil, não seja impedido de falar, por suspeita de ser anti-norte-coreano (ELE EFETIVAMENTE O É) , ou de estar a soldo dos malditos ianques imperialistas. 


PS - Continuo com muitas aflições pululando em minha alma, não mitigadas pela reflexão. 








FUGA DO CAMPO 14 - BLAINE HARDEN -  EDITORA INTRÍNSECA -  230 PÁGINAS.