domingo, 1 de julho de 2012

AS IDEIAS TÊM CONSEQUÊNCIAS – RICHARD M. WEAVER

“Há razões para afirmar que o homem moderno tornou-se um imbecil moral”- Richard Weaver



Existem alguns livros que pela importância de sua temática e pelo talento argumentativo de seu autor, se tornam indutores de fortes reações por parte do leitor, revolvendo conteúdos que já haviam sido dados como pacificados. É aquele tipo de livro que nos faz ter a sensação de que o autor se projeta das páginas e se posta em nossa frente, iniciando um diálogo contundente, provocando-nos o tempo todo, nos obrigando a pensar e admitir hipóteses que normalmente mantemos fora de nossa tela de análise, por acreditarmos justamente no oposto.
Atualmente, procuro ser muito seletivo com aquilo que chamo de “livros diagnóstico”, que abundam nas prateleiras das lojas que vendem livros (as livrarias são cada vez mais raras) e que abrangem os mais variados assuntos, tentando dar a cada um deles uma visão definitiva, uma “fotografia em alta definição da realidade”. São livros que expressam impressões, opiniões calcadas na credibilidade ou celebridade do autor, não raro conquistada em outra área que não a abordada no livro, mas normalmente carente de documentos, estudos e fontes que demonstrem e embasem suas opiniões. Se isto não desqualifica necessariamente a obra, ao menos exige algum critério, sob pena de nos perdermos num mar de opiniões contraditórias, umas tão válidas ou inválidas quanto as outras.


RICHARD WEAVER
Richard Malcolm Weaver foi um intelectual americano que teve uma vida relativamente curta, 53 anos, mas marcou sua época com uma obra importante, sendo a mais impactante o clássico “Ideas Have Consequences”  de traço indiscutivelmente conservador, que expõe o declínio da civilização ocidental. Suas reflexões o levam a um diagnóstico bastante desalentador :  “Não existe termo apropriado para descrever a situação em que o homem se encontra agora, exceto a noção de “abismalidade”. Ele encontra-se num profundo e escuro abismo e não dispõe de nada que lhe permita erguer-se. Sua vida é uma prática sem teoria”.
Ora, não faltam autores e obras que se debruçam sobre esta noção de decadência à qual parece estarmos submetidos de maneira inexorável, mas Weaver apresenta, se não uma novidade, algo raro de se encontrar nos “livros diagnóstico” : uma visão otimista de que o mundo é inteligível ao homem e este declínio, é resultado de escolhas menos sábias que fizemos ao longo da história, que foram se acumulando, mas que, sobretudo, existem saídas para a humanidade.



O livro “As Ideias Têm Consequências”, foi publicado originariamente em 1948 e só o conheci através da tradução lançada no Brasil em março de 2012.  Contudo, o livro continua atual e já me atraiu fortemente pelo título, pois sinto-me vivendo numa época em que parece que esta noção, absolutamente óbvia, parece ser acintosamente ignorada. Basta acompanharmos as notícias do dia-a-dia para nos depararmos com a esquizofrenia do discurso de políticos, jornalistas, artistas, intelectuais, historiadores e demais agentes que possuem alguma voz na grande mídia. Mas não apenas isso : ouvimos as opiniões do cidadão comum em cada canto da cidade e raramente podemos identificar alguém que seja especialmente cuidadoso com aquilo que diz, profere, defende. 
As ideias levam às ações e estas à consequências que são mais ou menos óbvias, mas que certamente, se não podem ser antevistas a montante, torna-se um sinal grave de idiotia não reconhecê-las a jusante ! É impressionante, por exemplo, que alguém que se dedique a estudar minimamente as ideias que sustentam qualquer “pensamento revolucionário”, sobretudo os que se abateram sobre o século XX, não levar em conta o ordenamento de consequências lógicas destas ideias sobre o conjunto da humanidade, mesmo depois delas terem se mostrado desastrosas inúmeras vezes.


  
Esta esquizofrenia nos leva aos pseudo-intelectuais que acreditam nas ideias de Marx, Lênin, Stalin, Mao, Gramsci, Fidel, mas não nas consequências que se abateram no mundo, deixando um rastro de mais de 120 milhões de mortos, como se fosse possível simplesmente amputar a ideia de suas consequências indesejadas, mantendo a ideologia como algo intocável em busca de um eterno devir.



Mas não é necessário nem desejável particularizar este fenômeno ao pensamento revolucionário ! O pensamento reacionário e conservador também produz seu montante de aberrações que são analisadas de maneira igualmente esquizofrênica, pauperizando o sentido de nossas vidas através da ficção monetarista, o consumismo e o capital que nos escraviza até o túmulo – nossa última morada, pela qual também teremos que pagar. 




Sob a bandeira da liberdade econômica, do livre arbítrio , do conforto e do crescimento contínuo, deixa igualmente  sua esteira de milhões de mortos, ou pior, mantém-nos vivos para nos explorar até o último suspiro, quando seremos descartados como pilhas desgastadas do sistema, e como tais, ainda poderemos render alguns tostões aos viventes, quando nossos ossos ou cinzas forem entregues numa urna a nossos familiares.



O livro de Weaver começa com uma crítica ao nominalismo do filósofo Guilherme de Ockham (séc. XIV) que pôs fim à ideia da existência de “universais”, ou seja, princípios que regem a natureza, incluindo a nós mesmos e que são percebidos pelo intelecto, substituindo-os pela realidade percebida exclusivamente pelos sentidos, rebaixando assim a dimensão do próprio ser humano àquilo que ele pode perceber, desconsiderando sua intuição e sua intelecção da realidade. Não é preciso dizer que tal idéia ganhou uma força ainda mais avassaladora a partir do Iluminismo e à abdicação do pensamento transcendental do humano em favor do racionalismo científico, que ao invés de lhe dar sentido, antes rouba-o, colocando no lugar o culto ao egoísmo e a ruptura da interligação com os outros indivíduos e com algo que transcenda seu próprio umbigo : É o princípio do fim de qualquer padrão moral.


GUILHERME (WILLIAM)  DE OCKHAN
Weaver localiza historicamente o “desvio” que a humanidade tomou a partir do momento em que passou a acreditar exclusivamente nos sentidos e consequentemente no materialismo e cientificismo para guiar sua vida : “ ...o homem não deveria guiar-se por uma análise científica que apele à impotência moral” .
Sob a égide da Liberdade e da Democracia, a humanidade vem cavando seu túmulo existencial, não obstante suas necessidades “espirituais” continuarem tão presentes como sempre : o culto ao Catolicismo deslocado para um sem número de denominações religiosas, seitas gnósticas e outras tantas crenças atestam que o humano não prescinde da necessidade de crer em algo além de si, ainda que, em situações extremas que beiram a demência, acaba acreditando no “si mesmo” como princípio organizador do universo.  Como disse brilhantemente G. K. Chesterton – “o problema de quem não acredita em Deus, é que ele tende a acreditar em todo o resto”  -  significa que um indivíduo que se diz ateu e ainda assim acredita num ideal político como sendo a  expressão da verdade, ou que um filósofo ou líder pode deter a verdade última a ponto de definir o futuro da história humana, ou no mercado como regulador universal das relações humanas, ou que uma bolsa de tal grife pode conferir atributos qualitativos a quem a usa, não é um ateu de forma alguma , apenas cultua outras coisas. 




Minha grande dúvida, neste sentido, é porque não cultuamos algo como a Ética Humana, cuidamos primeiro da ecologia do ser humano, de sua psicologia atormentada e doentia, antes de falarmos em ecossistemas, religiões, economia verde ou ideologias de qualquer ordem. Deixamos de perceber algo que é gritante : nos maltratamos e maltratamos o outro em nome de um racionalismo imbecil, que não se sustenta para além de duas ou três perguntas - ainda que estas perguntas jamais sejam feitas. Afinal, qual foi a última vez que você se perguntou e tentou responder com sinceridade, se havia uma outra maneira melhor de agir do que aquela pela qual você optou ?
Neste sentido, Weaver aponta : “Parece-me que o mundo está agora, mais do que nunca, dominado pelos deuses da massa e da velocidade, e que o culto a eles pode conduzir apenas à diminuição dos padrões, à adulteração da qualidade e, em geral, à perda das coisas que são essenciais à vida da civilidade e da cultura. A tendência a olhar com suspeita para a excelência – tanto intelectual quanto moral – como algo “anti-democrático” não mostra sinais de diminuição.
O livro de Weaver não é muito extenso, mas é bastante abrangente se considerarmos a pretensão da obra. Seu texto passa pela organização social que tende cada vez mais à verticalização, a perda do sentido e do prazer do trabalho que foi transformado em sacrifício, a amputação das lições do passado, o igualitarismo que ignora o mérito, a pasteurização equivocada do talento humano que transforma a sociedade em massa e a substituição dos preceitos morais pelo cientificismo amoral. Ainda nos mostra a evolução da substituição de qualquer forma de transcendência ou ordem universal pelo utilitarismo e o pragmatismo e do talento artístico pela liberdade impositiva de todas as formas de expressão. Tratam-se de pontos polêmicos, que suscitam muitas divergências, como suscitaram em mim, mas é um excelente tratado para reflexão e sua atualidade depois de 64 anos do lançamento editorial, assim o demonstra.

 
Em vários capítulos, peguei-me em franca discussão com o autor, SUBLINHANDO-O e  apontando meus argumentos, sobretudo pelo fato de que o próprio desvio das “escolhas sábias da humanidade” é ele mesmo não apenas uma possibilidade, mas uma consequência das mesmas ideias das quais se desviaram, posto que se fossem inequívocas, não haveria força suficiente para que os desvios se consolidassem. Não podemos nos esquecer que os valores transcendentais e as organizações hierárquicas do passado, escravizaram e usurparam milhões de pessoas, comprometendo sua própria legitimidade enquanto estrutura ideal da sociedade humana. Contudo, é impossível negar o argumento central do livro : As ideias, as escolhas e as ações têm consequências e é preguiça, falta de inteligência ou desonestidade, deixar de reconhecer as relações de causa e efeito entre elas. 








AS IDEIAS TÊM CONSEQUÊNCIAS - RICHARD M. WEAVER - É REALIZAÇÕES EDITORA - 207 PÁGINAS 


Duas observações : 1) Infelizmente esta edição contém muitos erros bobos de revisão, omissão de letras e alguns mais graves, o que me surpreende por não ser comum desta editora, que prima pela qualidade de seus livros. 
2) A escolha da capa, em contrapartida, foi primorosa ! Difícil imaginar melhor escolha do que esta pintura de Brueguel para envolver esta obra de Weaver e sua temática, motivo pelo qual a reproduzo abaixo de forma integral.


BLIND LEADING THE BLIND - (1568) - PIETRE BRUEGEL 









segunda-feira, 11 de junho de 2012

FOME - KNUT HAMSUN

"Você sabe realmente o que é fome?"





Você acha que tem problemas ? Já passou fome alguma vez na vida ? Não aquela fome que dá porque naquele dia não almoçamos por qualquer razão ou aquela sensação de insatisfação que dá depois de algum tempo de uma refeição pobre de carboidratos e proteínas. Também não me refiro àquela fome assassina, terminal, típica das populações que se encontram sob “genocídio estático”, como alguns países africanos, ou dos “genocídios ativos” como nos casos de campos de concentração ou cercos como o da Ucrânia no começo do século XX, ou ainda das populações que ficaram privadas de alimentos por ocasião de alguma catástrofe natural.


Refiro-me a um tipo específico de fome, fruto de um estado de pobreza extrema que se não chega a matar,  é persistente, diária. Uma carência constante que faz com que nossa mente deambule entre estados de bipolaridade induzida – no começo da fome, nos tornamos mais alertas, pensamentos ágeis e um tanto paranóicos, nossos movimentos são mais rápidos e aparentemente nos encontramos num estado de prontidão física e intelectual ímpares. Com o passar do tempo, nossa energia cai, o estômago começa a doer de fato, se contraindo sobre o vazio num espasmo desconfortável. Nesta fase, nossos pensamentos já não são tão ágeis como na fase anterior, mas começam a se focar em fantasias específicas como um bom prato de comida : nos tornamos quase delirantes enquanto nosso desconforto físico vai aumentando. Mais algum tempo sem alimento, o desconforto físico vai diminuindo e nossos movimentos vão ficando mais lentos, econômicos e nosso estado mental sofre um fenômeno que eu classifico como “deslocamento” – excelente para experiências transcendentais como meditação. Quando finalmente conseguimos ingerir algo, dependendo de quão substancioso é esse algo, podemos aprofundar a letargia de nosso corpo que estará completamente envolvido em processar o alimento, ou voltarmos para o estado de prontidão paranóica quase que imediatamente. Este último caso, obviamente, é aquele em que nossa refeição é absurdamente restrita, que nos afasta por mais alguns centímetros da beirada abismal da inanição, mas não nos deixa satisfeitos nem seguros. A fome constante não muda apenas o corpo de uma pessoa, mas também sua mente e a repetição deste estado nos leva a uma nova relação com a realidade – nos tornamos mais resistentes e com idéias mais fixas sobre o como as coisas devem funcionar, ainda que estas idéias sejam, na maioria das vezes, delirantes, inconsistentes aos olhos de um ser devida e regularmente alimentado.


Na minha visão, é sobre esta fome, da qual ele próprio padeceu, que Knut Hamsun constrói seu romance “Fome”.  Tudo indica que Hamsun fez da personagem principal e quase única da trama, seu alter ego perfeito, que viveu a trama exatamente como ele teria vivido numa situação análoga - e de certa forma viveu, pois há algumas semelhanças entre a trajetória do  protagonista e a do próprio autor. Segundo sua biografia, Hamsun foi estivador, lenhador, marinheiro, sapateiro, condutor de bonde, jornalista, cuidador de frangos e escritor, ganhador do Premio Nobel de 1920. Conheceu de perto a vida errante e solitária em busca de seu sustento. O escritor norueguês foi controverso em tudo que fez e tendo horror à cultura ocidental, chegou a nutrir simpatia pela Alemanha nazista e embora jamais tenha se filiado ao partido, sua idéias a respeito dos nazistas o levaram à prisão em 1947. Morreu aos 92 anos, deixando uma obra contundente, com personagens marcantes. Dizem que deixou este mundo "sem remorsos". 

KNUT HAMSUN

Narrado em primeira pessoa, a história se desdobra em 1890, com o protagonista percorrendo a esmo as ruas de Cristiania (atualmente Oslo) na Noruega, munido apenas de suas vestes rotas, um maço de papéis que ele chama de caderno e um toco de lápis, com o qual tenta escrever um artigo que possa ser vendido a algum jornal, com o objetivo de obter recursos para pagar o aluguel do paupérrimo quarto que ocupa e comer um prato de comida, uma vez que já nem se lembra qual foi a última vez que comeu. No filme homólogo, baseado no romance de Hamsun, o protagonista recebe o nome de Pontus, interpretado pelo magnífico Per Oscarsson,  mas no livro, seu verdadeiro nome não é declinado.


PER OSCARSSON


O contraste de sua aparência lastimável com a altivez de suas atitudes, nos faz lembrar da obra de Cervantes – uma espécie de Quixote urbano, solitário, sem ajudante ou cavalo e portador de uma nobreza e um senso moral totalmente incompatíveis com sua desesperadora condição. Seu toco de lápis é sua lança e seu caderno o escudo com os quais tenta enfrentar a dura realidade que o cerca, através de uma visão e uma ética muito próprias. Numa passagem, vemos o já despossuído escritor numa loja de penhores, colocando seu desgastado colete no prego, para obter umas moedas não para fazer o que seria uma mais que tardia refeição, mas para dar de esmola a um mendigo coxo ! Seguimos o desespero contido (que para o leitor se torna ainda mais angustiante) do protagonista ao constatar que seu toco de lápis ficara no bolso do colete, recém empenhado e seus esforços para recuperá-lo de forma digna.


A trama segue com a luta cotidiana deste arremedo de pessoa que tenta por toda sorte, manter sua dignidade e sua sanidade contra um organismo que o açoita de dentro para fora, reclamando algum alimento. A falta de dinheiro e portanto de abrigo e comida, transtornam sua mente, fazendo-a oscilar entre a crueza de sua realidade imediata e os devaneios de uma vida palaciana, requintada, junto com sua Iaiáli, nome dado por ele a uma jovem que conheceu de passagem e com quem ensaiou um romance fracassado. Ele necessita de sua mente para escrever os artigos que lhe rendem algumas parcas coroas para se alimentar, mas por falta de alimento, sua mente mal consegue se concentrar fechando um perverso círculo vicioso.




Ele sofre não apenas por sua carência, mas pela impossibilidade de auxiliar outras pessoas que encontra pelo caminho, tão necessitadas quanto ele, como se tivesse para com elas, uma dívida irresgatável. Em vários pontos de sua trajetória, está convencido de que Deus o está destruindo sistemática e deliberadamente, pois parece que o mundo inteiro, suas bobagens, regras e burocracias não estão minimamente preocupadas com a emergência de sua situação. Em algum momento do livro ele registra :   “ Eu observava muito bem que, se jejuasse durante um período bastante longo, era como se meus miolos me escorressem suavemente do cérebro, esvaziando-o. A cabeça se tornava leve, como que ausente; já não lhe sentia o peso sobre os ombros; e, se olhava para alguém, tinha a sensação de que meus olhos estavam fixos, arregalados.”


Penso que a leitura deste livro nos faz rever uma perspectiva humana, da qual a maioria que o lê, se encontra afastada ou dela jamais se aproximou : como nossos pensamentos e necessidades cotidianas são absolutamente enganadoras – um revestimento da miserabilidade de nossas necessidades básicas, que começa a cair apenas algumas horas depois de sermos privados de alimento, água ou sono .    É absolutamente incrível como um ser bem alimentado, hidratado e bem dormido, pode imaginar as mais complexas relações cósmicas, construir planos, fazer arte, construir significados e erigir impérios em nome de seus ideais, de seus pensamentos, e mais incrível ainda, ver todos estes constructos se desmontarem, os edifícios de significados derreterem como bonecos de neve expostos ao sol de verão, a razão se toldar e o discurso se deteriorar em fábulas alucinatórias diante da fome contumaz . Uma pessoa bem alimentada é capaz de pensar em programas sociais, abrigos e toda a sorte de soluções para os desvalidos, mas parece ser incapaz de perceber e resolver a situação de um ser que está com fome concreta, bem à sua frente. Para os bem alimentados, a pobreza extrema é um conceito, não uma pessoa que necessita de alimento imediatamente! 
Apesar da dureza do texto de Hamsun, a personagem criada por ele, é resistente e goza de uma liberdade inacessível para a maioria das pessoas que possuem coisas e são possuídas por elas. A total falta de posses , o imediatismo de suas preocupações básicas e a falta de vínculos, permitem ao protagonista mover-se pela vida e pelo mundo como um aventureiro, único senhor de seu próprio destino.  


FOME - KNUT HAMSUN - GERAÇÃO EDITORIAL - 171 PÁGINAS - Destaque para a tradução primorosa de Carlos Drummond de Andrade.


FOME (SULT) O FILME
O filme baseado nesta obra, foi lançado em 1966 com a interpretação magistral de Per Oscarsson, que lhe rendeu o prêmio de melhor ator em Cannes naquele ano. Lançado recentemente no Brasil pela Platina Filmes, o DVD conta com excelentes extras : o depoimento do diretor Henning Carlsen, e um bate papo entre a neta de Hamsun - Regine Hamsun e o escritor Paul Auster, acerca da obra. 




domingo, 27 de maio de 2012

HHhH – HIMMLERS HIRN heiβt HEYDRICH – LAURENT BINET


“Vocês deviam escolher entre a guerra e a desonra. Escolheram a desonra. E terão a guerra” – Winston Churchill


Existem apenas duas coisas que me impressionam tão negativamente quanto o nazismo :

1 - Como tanta gente pôde compactuar por tanto tempo com as piores atrocidades, na esperança de que estas não as atingisse de forma alguma – É como aquele pensamento infantil – Se cubro os olhos e finjo que não vejo, a ameaça desaparece.
2 - Como, apesar da candência ainda atual deste que é um dos piores episódios de barbárie concentrada da humanidade (a farta literatura que ainda é produzida sobre o tema demonstra isso),  muitos ainda o ignoram ou tem um interesse pífio, de "ouvir falar" e fazem dele apenas sinônimo daquilo que não gostam, ou que acham impositivo ou autocrático a ponto de chamar qualquer medida de restrição da qual não gostam, pura e simplesmente  de “nazista”.

Infelizmente, estas duas facetas humanas, covardia travestida de esperança e ignorância fantasiada de saber, não se aplicam apenas ao nazismo, mas à maioria das tragédias humanas, perpetradas pelos próprios humanos. Confesso que para ter uma idéia, que considero apenas razoável deste fenômeno, tenho estudado-o por décadas, através de dezenas de livros, filmes e documentários das mais diversas fontes e não canso de surpreender-me sobre o quanto sei pouco sobre o tema.


LAURENT BINET

Fiquei feliz de encontrar um escritor jovem, nascido em 1972, capaz de se interessar pela história a ponto de escrever um episódio dela de forma romanceada, mas buscando todas as fontes documentais, fotográficas,  linguísticas, testemunhais e locais para, apesar do lirismo que por vez trespassa seu texto, ser o mais fiel possível aos fatos.  Este foi o trabalho que o francês Laurent Binet construiu em seu ótimo romance HHhH, que significa "O cérebro de Himmler chama-se Heydrich", lançado no  Brasil no final de abril deste ano. O livro ganhou grande reconhecimento na Europa e lhe rendeu o prestigiado prêmio Goncourt de 2010.
Uma das características que chama a atenção neste romance é a trama tecida pelo autor, que imiscui a si mesmo em diversos trechos, relatando seus pensamentos e sensações no transcorrer de sua pesquisa, na manipulação de fotos e documentos ou de passagem pelos cenários (já muito modificados) onde tudo ocorreu e na própria escrita de cada capítulo. 


Ele divide com o leitor suas angústias e inseguranças de preencher lacunas da história com licenciosidades de sua imaginação ao mesmo tempo em que se percebe sua entrega de corpo e alma à tragédia que marca especificamente este episódio da Segunda Guerra Mundial.


REINHARD HEYDRICH

O romance narra os bastidores da Operação Antropoide - o atentado contra a “Besta Loira”, o “Açougueiro” ou o “Carrasco de Praga”, codinomes ostentados com orgulho pelo mais fiel e temido membro do Partido Nazista  e número 2 na hierarquia de comando da SS – Reinhard Heydrich em maio de 1942, bem como os eventos que o antecederam e que o sucederam.  




Como bem descreve  Binet, o atentado só foi possível  graças a colaboração de um punhado de heróis anônimos que resistiam à ocupação nazista e que deram o suporte necessário aos dois paraquedistas tchecos  Jan Kubis e Jozef Gabcik, que apoiados por um terceiro paraquedista (Valcik) que não estava originariamente na missão, realizaram o atentado em plena luz do dia, numa curva  de uma rua de Holesovice em Praga.

KUBIS E GABCIK


Como conseqüência direta deste atentado que acabou por ser bem sucedido, pois Heydrich morreu dias depois por septicemia, muitos tchecos foram sumariamente executados. A aldeia de Lídice, nos arredores de Praga, teve sua população quase integralmente dizimada numa das mais brutais ações da SS, apenas porque havia uma suspeita de que um dos responsáveis pelo atentado tivesse alguma relação com a aldeia . Não obstante todo o sacrifício do povo tchecoslovaco, os paraquedistas heróis acabaram por ser traídos pelo também soldado tcheco, Karel Curda.


MONUMENTO ÀS CRIANÇAS MORTAS EM LÍDICE

É uma história de reparação : O heroísmo de poucos resgatando os resultados nefastos da covardia de muitos -  A tibiedade da política inglesa nas mãos de Chamberlain e o servilismo do marechal francês Philippe Pétain, encorajaram Hitler a seguir com seus planos de expansão do espaço vital germânico, uma vez que conseguiu a anexação da Áustria e da região dos Sudetos (fronteiriços à então Tchecoslováquia) sem a necessidade de disparar um único tiro  : apenas com sua máquina infernal de propaganda e intimidação. Após a anexação dos Sudetos o então presidente da Tchecoslováquia, Edvard Benes renunciou e se exilou em Londres, liderando o movimento de libertação do país. Daí para a invasão total da Tchecoslováquia foi um passo e a designação do competente e meticuloso Heydrich como Protektor de Praga, fazendo de seu presidente Hácha, sucessor de Benes, apenas mais um dos fantoches a serviço do Reich alemão. Heydrich era um dos mais dedicados nazistas a conduzir os planos da "Solução Final", junto com seu assecla Eichmann. Benes então convoca Gabcik e Kubis para a Operação Antropoide, que consistiu em saltar de paraquedas sobre a Tchecoslováquia e empreender a missão suicida de assassinar o Obergruppenfüher Heydrich.



A figura de Heydrich, bem como sua trajetória até os mais altos escalões da SS, como braço e cérebro de Himmler, é bem esmiuçada por Binet. Heydrich encarnava tão bem o ideal nazista tanto na concepção quanto na ação, que chegava intimidar os próprios nazistas – a relação dele com Himmler era de cautela de ambas as partes.



Binet se emociona com a história que conta e demonstra isto o tempo todo e quando narra o episódio do atentado propriamente dito, o faz em descrição cinematográfica, como se pudesse suspender a narrativa, suprimir-lhe o tempo real numa espécie de câmera lenta muito bem executada.  Esta emoção que Binet coloca em seu livro, nos transforma em cúmplices de Gabcik e Kubis – corremos com eles em sua fuga tresloucada logo após o atentado no qual tudo o que poderia dar de errado, deu, exceto que acabou por ser bem sucedido ! Escondemo-nos com eles na cripta da Igreja de São Carlos Borromeu (hoje denominada de Igreja de São Cirilo e São Metódio) e resistimos ao ataque por todos os lados de mais de oitocentos soldados da SS. 
Interessante observar que após o episódio do massacre de Lídice, o mundo "tomou conhecimento" das atrocidades nazistas, não mais pela conversa fiada de seus medrosos governantes, mas pelas imagens e pelas notícias enviadas diretamente do palco da tragédia : a máquina de propaganda nazista começa a ruir.



Gostaria de que mais escritores romancistas se dispusessem a escrever sobre capítulos específicos da história : é muito mais instrutivo entrar em sintonia com as emoções do autor em cada passagem do que se deparar com a narrativa seca e caudalosa da maioria dos historiadores.





HHhH - LAURENT BINET - COMPANHIA DAS LETRAS - 337 PÁGINAS.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

PARTÍCULAS ELEMENTARES – MICHEL HOUELLEBECQ

"Nós, em geral, sabemos onde estamos em relação à realidade e não queremos saber mais nada sobre ela."




No início deste século, fui surpreendido por um autor francês do qual nunca havia ouvido falar: Michel Houellebecq.  Partículas Elementares foi o primeiro livro que li deste autor e fiquei absolutamente hipnotizado por sua narrativa e pela sua habilidade em tratar de assuntos   complexos com a mesma desenvoltura com que trata dos simples. Ao mesmo tempo em que discorre com fluidez teses científicas, denotando uma cultura acima da média neste campo, narra intercursos sexuais com a máxima riqueza de detalhes, que pode parecer desnecessário, mas confesso que não vejo uma linha deste livro que não devesse estar onde está.


MICHEL HOUELLEBECQ

Houellebecq é um autor polêmico que alinha sua mira afiada sobre o declínio da civilização ocidental na pós-modernidade, quando os humanos começam a perceber que a substituição de Deus e da religião pela ciência e pela racionalidade não conseguiu realizar nem a promessa de descobrir o sentido da vida, nem tampouco a de descobrir a fórmula da felicidade. Com exceção de “O Mapa e o Território”, que acabou de ser lançado no Brasil, li toda a sua obra traduzida para o português : Extensão do Domínio da Luta; Plataforma; A Possibilidade de Uma Ilha; Partículas Elementares. Em todos eles percebo no autor os traços desta decepção pós-moderna, de uma melancolia que, como diria Emil Cioran, é bem mais branda que a tristeza, pois carece de um objeto externo específico, porém é mais duradoura, pela falta mesma de objeto específico. A melancolia é um processo solitário, interno, que só pode deixar-se entrever nas atitudes e na escrita de quem a possui. Vejo na obra de Houellebecq, um eixo tripartite que trespassa seus romances de forma inequívoca : 1) A decepção com a pós-modernidade, 2) A decepção com o hedonismo, sobretudo sexual e 3) A esperança de uma reforma do humano através da engenharia genética e das técnicas de clonagem.


Sua escrita chega a ser brutal em alguns momentos e alguns críticos execram a sexualidade explícita e exacerbada de parte de suas tramas, mas penso que este tipo de análise é absolutamente superficial, com laivos da pandemia do Politicamente Correto que se espalha pelo globo terrestre nas últimas décadas : Não há obscenidade maior, pornografia perversa mais elaborada do que aceitarmos placidamente que um comediante saia algemado de uma casa de espetáculos porque contou uma “piada preconceituosa” e um assassino confesso saia pela porta da frente de uma delegacia, com direito à entrevista na televisão para que ele dê sua “visão de mundo” e sua versão dos acontecimentos que o levou a matar uma pessoa para roubar. 


Vivemos em tempos em que os sentidos são cada vez mais transitórios com scripts ordinários como os velhos pulp - fiction dos anos 50, encenando num teatro de marionetes uma peça de mal gosto, sob os cordames do Mercado e pelas mãos de um titereteiro pusilânime chamado Estado.

  
Partículas Elementares conta a história de dois meio-irmãos por parte de uma mãe hippie, Michel e Bruno que se encontram apenas na adolescência e empreendem buscas pessoais em direções bastante distintas do cenário da vida humana : o primeiro é biólogo, gênio em matemática, pesquisador, racional e determinado, que vive uma vida pessoal prosaica, onde sua libido não consegue encontrar forma de expressão senão pela sublimação intelectual.  Já Bruno, professor de literatura, busca  encontrar no prazer sexual o Graal que irá perseguir em aventuras cada vez mais inconseqüentes.
Enquanto Michel, que era obcecado pela  idéia de reprodução humana sem sexo e por clonagem celular (sua busca pelas Partículas Elementares da vida), resolve se demitir do instituto de pesquisa em que trabalhava para retomar um antigo projeto genético abandonado logo no início de sua carreira, Bruno tem  uma crise depressiva após uma tentativa frustrada de sedução de uma de suas alunas e acaba se internando em uma clínica para tratamento psiquiátrico. Os irmãos se encontram em vários momentos e embora estejam ambos passando por crises pessoais intensas, o diálogo entre eles é quase surreal, tamanha a distância aparente de suas visões da vida e suas buscas pessoais.

É interessante observar que no desenrolar da trama, estas duas personagens, com suas respectivas libidos apontadas em direções opostas, caminham rumo ao mesmo destino : a decepção e a impossibilidade de redenção da própria vida. 


Michel reencontra Annabelle, uma antiga paixão pela qual só havia desenvolvido um relacionamento platônico e começa um esboço de relacionamento amoroso, frente sua total inadequação ao contato físico e à expressão de seus sentimentos. Ao mesmo tempo, resolve voltar à Irlanda, onde desenvolvera seu projeto de clonagem de células humanas que acabara por abandonar prematuramente. Bruno resolve abandonar sua mulher, por quem já não conseguia mais sentir atração sexual, e se aventurar num acampamento de nudismo em busca de experiências sexuais que o excitassem. Neste acampamento, após inúmeras frustrações, conhece Christiane, com quem acaba por ter um tórrido romance que se estende para a vida além do acampamento. Christiane conduz Bruno à sua vida de devassidão sexual, em clubes de swing e sexo grupal, trazendo todo o estímulo que ele tanto buscava. 


Ao mesmo tempo, Michel, de volta à Irlanda, tem a notícia de que seu trabalho não fora interrompido, mas ao contrário, frutificara, pois outros pesquisadores haviam confirmado seus cálculos que abriam novos caminhos para a humanidade, não apenas da reprodução sem a necessidade do intercurso sexual, mas a possibilidade de se estender para várias partes do corpo a presença dos receptores responsáveis pelo prazer sexual (corpúsculos de Krause), que normalmente se encontram mais concentrados apenas em pontos específicos da genitália feminina e masculina.

CORPÚSCULO DE KRAUSE
Partículas Elementares ganhou em 2006 uma versão alemã para o cinema que merece ser vista, mesmo após ler o livro, pois além de uma adaptação magistral, conta com um elenco excelente que parece ter saído diretamente da imaginação de Houellebecq.



O final do livro é surpreendente e funde,a meu ver de maneira brilhante, a tragédia e a esperança, que acabam de certa forma aparecendo em outras obras do autor.



"PARTÍCULAS ELEMENTARES" - MICHEL HOUELLEBECQ - EDITORA SULINA - 340 PÁGINAS.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

O ABISMO DE NIETZSCHE

“ Se olhares demoradamente para dentro do abismo, o abismo olhará para dentro de ti”. - FRIEDRICH NIETZSCHE




Escrever sobre "Quando Nietzsche Chorou", trouxe-me os velhos questionamentos da marreta do filósofo, presente em sua obra, que tive o prazer de desfrutar ainda na juventude. Lembrei-me de duas idéias de Nietzsche que sempre me perturbaram : a do abismo e a do eterno retorno. Resolvi dedicar este post como uma extensão daquele último sobre o tema, muito mais como uma reflexão despretensiosa, fruto de uma experiência própria contemplando o fundo do abismo.  Nietzsche não diz apenas “olhar para dentro do abismo”, mas “olhar demoradamente para dentro do abismo”, ou seja olhar o tempo suficiente para que nossos sentidos se quedem diante da inutilidade de tentar divisar e referenciar o nada. Frente à cessação da busca do referencial externo, nos tornamos o próprio abismo, cuja visão retorna no sentido oposto, livre dos ruídos dos sentidos, para nos darmos conta daquilo que habita nosso interior : não as coisas conscientes, que estão disponíveis a um simples chamado da memória, nem aquelas das quais nem sequer suspeitamos da presença a maior parte do tempo, mas daquilo que ainda as antecede, uma não linguagem, uma harmonia com o não ser.



Ao olharmos demoradamente para dentro de um abismo, deparamo-nos com o nada, com o rompimento da gestalt que permite nossas percepções  : não temos mais uma figura e o fundo nos engole, se apossa de nosso entorno para em seguida invadir-nos até a alma. Depois de remoer um pouco esta ideia, cheguei a um pensamento derivado que é “ A consciência é o ponto de estrangulamento de um único abismo”.





O estrangulamento advém pois desta injunção que nos dá ilusão de um limite real de algo que é contínuo. Este estrangulamento é temporário, leva o tempo de uma vida, antes do retorno ao contínuo, àquilo que não tem limite nem presença. Este olhar para dentro de si começa como numa espiral, onde primeiro tentamos entender, dar significado, para lentamente ir perdendo completamente os referenciais lingüísticos, simbólicos, ficando expostos a um sentir sem palavras, sem imagens sem conceitos. Não conseguimos pensar o impensável e sem uma linguagem que nos faça sentido, que tenha significado, encontramos o nada absoluto. Estamos irremediavelmente presos aos limites de nossa linguagem e o que possa haver além dela, para nós se apresenta apenas como o nada. Talvez este seja o princípio do Eterno Retorno de Nietzsche : Encontramo-nos no nó de uma ampulheta, que é nossa consciência, condenados a assistir a passagem dos mesmos grãos de areia (aquilo que nossa linguagem pode significar) de um lado para outro da ampulheta, sem jamais podermos divisar o que há fora da ampulheta, que apenas intuímos (mas só    conseguimos imaginar como se também fossem outros arranjos de grãos semelhantes aos grãos de areia disponíveis na ampulheta).




Se demorarmos o tempo suficiente olhando para o fundo do abismo, o sentir conhecido, os ecos corporais vão se tornando distantes, abrindo espaço para sentires cada vez mais estranhos, como se estivéssemos nos projetando no vazio... o mesmo vazio sem referencial que insistíamos em tentar divisar no fundo sem fundo do abismo. 




É como se de alguma forma, retornássemos ao ponto de partida. Um ponto de partida que é tão de partida quanto é de chegada, portanto um contínuo... Um plano contínuo onde a única coisa que se interpõe entre o dentro e fora é a nossa consciência, nossa noção de corpo físico contemplante. A sensação decorrente pode ser chamada de "sentido de presença", numinosidade ou qualquer outro nome que se queira dar, inclusive pura e simplesmente "consciência". Parece-me que o limite de nossa consciência está vinculado ao quão estrangulado é este ponto onde moram nossas percepções : se for por demais apertado, perdemos a conexão com aquilo que somos, interrompemos o simples fluxo do fora e dentro, vendo-os como coisas absolutamente separadas. Se por outro lado, for por demais frouxo, nos aproximamos dos ascetas que buscam o Nirvana e perdemos igualmente a conexão com qualquer coisa que tenha significado. Sobre esta busca dos ascetas... penso que há uma pressa injustificada : o rompimento de nosso elo de consciência é líquido e certo. É apenas uma questão de tempo. Talvez devêssemos apreciar e conhecer os grãos de areia de nossa ampulheta, sabendo que são os mesmos, de um lado e de outro e que basta estarmos atentos para vê-los passar diante de nossos olhos.



sexta-feira, 20 de abril de 2012

BOA NOITE SR. WINDOWS ! - PARTE 2

"O QUE SERÁ DE NÓS QUANDO SUA LUZ APAGAR A NOSSA?"



Boa noite Sr. Windows ! Eis-me aqui de volta. Então, como eu ia lhe dizendo, venho me tornando um ser cada vez mais virtual, na medida em que aquilo que realmente penso e sinto só ganha alguma materialidade ou noção de conjunto, se é que posso dizer isso, por seu intermédio. Meu corpo físico está imbuído praticamente apenas à repetição infinda (enquanto ele durar) de ações e comportamentos determinados pelo espectro permitido a gente como eu, que ocupa um determinado extrato ou camada da realidade, em que esta me permite certas coisas e não outras. 


Explico : Há algum tempo já percebi que o mais importante para os meus semelhantes não é saber exatamente o que penso ou sinto ou mesmo o que sou verdadeiramente (esta palavra tem um tom de dramaticidade que eu muito aprecio). Não, absolutamente ! Meus semelhantes não querem saber disso, mas querem saber minha posição na tessitura da vidinha social e cotidiana, o meu rótulo, aquilo que me concede um lugar social e que, este sim, já diz tudo o que precisam saber sobre mim. Este é o máximo de interesse que um humano tem diretamente pelo outro humano, o que significa que a comunicação entre humanos não se dá senão por troca de identificadores de posição.  Sou o lugar que ocupo e este lugar que ocupo é ocupado por todos a quem, como eu, vêem depositados sobre si um conjunto prévio de características que nos definem.


Qualquer coisa que eu diga ou qualquer ato meu que contradiga este lugar ou rótulo ao qual estou vinculado, é visto com estranheza e pode ser condenado ou simplesmente, como a maioria das vezes acontece, ignorado. Ao ser ignorado ou repudiado  entre meus semelhantes, humano que sou, tenho a tendência de tentar me reintegrar àquilo que me define e acabo me esquecendo daquelas coisas que me diferenciam deste lugar que ocupo, sem tê-lo escolhido – pelo menos não conscientemente.


Como já declinei antes, é nesta hora que o Sr. vem em minha salvação através de seu filho mais querido ! Generoso que é, registra minhas impressões e sentimentos apócrifos e permite-me relembrá-los a qualquer hora, editá-los, copiá-los, recortá-los, colá-los, enfim, permite-me brincar com as milhares de peças de meu puzzle interno, como se eu tivesse todo o espaço do mundo : Uma mesa gigantesca para abrigar minhas montagens da forma que eu quiser e por quanto tempo eu quiser    (minha filha que era fanática por montar puzzles  de todos os tipos certamente sabe a importância disto).  Hoje, se alguém me perguntar quem eu sou, irei responder confiantemente – “Pergunte ao Dr. Word, filho do Sr. Windows”.  Isto me leva a pensar numa evolução interessante : Há apenas duas décadas, quando alguém não sabia o significado de uma palavra ou a sua grafia, falava-se – “Pergunte ao Aurélio". Mais recentemente o Sr. incorporou esta e tantas outras funcionalidades que quando alguém quer saber sobre qualquer coisa, da qual não sabe sequer o nome, diz-se – “Pergunte ao Google”.


Ok, eu sei que esta é uma ferida narcísica para o Sr., mas também sei o quanto  é benevolente e não guarda rancores, afinal é sempre o Sr. que tudo inspirou, que criou a necessidade que os filhos alheios viessem ao mundo. Além disso, seu outro filho dileto, o aventureiro Explorer, esteve muito perdido e aquém de suas capacidades, antes das bussolas virtuais. 




Mas o Sr. faz mais ! Muito mais. George Orwell imaginou muitas coisas, mas não imaginou que o Sr. pudesse gerar um filho para conter e nos oferecer diariamente os Ministérios do Amor e do Ódio juntos, numa experiência alternada de “frio-quente” que torna nossas vidas confortavelmente tépidas . O Sr. me orienta logo pela manhã e continua, ao longo do dia, a me alimentar de informações para que eu “decida” como devo reagir ao que está acontecendo no mundo real. Me informa quais são os inimigos do dia, quais são as novas ameaças e os estudos que provaram que as anteriores eram infundadas.




É o Sr. quem primeiro me informa em que pé as coisas estão pelo mundo – as catástrofes, os acidentes, os crimes, os roubos, os massacres, as corrupções e toda a sorte de ameaças que pairam sobre nossas cabeças, como a espada de Dâimocles, e que pode nos conduzir, de uma hora para outra, para a morte, a perda ou a miséria (não necessariamente nesta ordem). Falando em Orwell, o Sr. também nos possibilita a oportunidade diária de aprender a “novilíngua”  dos jornalistas e webwriters dos provedores do mundo inteiro ! É verdade que basta ler um para se saber o que todos irão escrever, inclusive os que irão escrever o contrário,  mas este poder de síntese hegemônica do pensamento mundial também tem é fruto da força que o Sr. criou e distribuiu entre nós mortais.



Mas não posso ser negativo, isto seria injusto: Entre uma tragédia e uma catástrofe, o Sr. me informa também a saborosíssima receita  de um bolo de laranja "light" (porque ninguém é de ferro), os fatos e as fotos mais importantes que envolveram os famosos, as notícias do futebol e outras tantas coisas que tornam o meu dia feliz. Fico estimulado ao acompanhar diariamente simplesmente TUDO o que acontece na vida do Neymar, seus hobbies, baladas, aquisições e as tintas usadas em seu penteado estilo “punk broxado”, bem como os passeios de Suri com seus pais Tom e Katie pela praia. Por mais tudo isso, é que só posso mais uma vez lhe dizer : Obrigado Sr. Windows !