Ateu, cético, pessimista, e
sobretudo polêmico, amado e odiado por muitos, Saramago instituiu uma nova
maneira de escrever, com seu texto cursivo, caudaloso, parágrafos imensos que
pedem mais vírgulas e quase clamam por um ponto final. Para mim não foi fácil
lê-lo pela primeira vez, mas depois que a gente pega o jeito, não consegue parar. São muitas as suas
obras de ótima qualidade que o tornaram famoso no mundo inteiro e acabou por
render-lhe um prêmio Nobel de Literatura em 1998, e aqui no Brasil ele ficou
mais popularmente conhecido, pelo “Ensaio sobre a Cegueira”, pois este livro
ganhou uma versão cinematográfica homônima que teve algumas cenas rodadas na cidade de São Paulo. Alguns anos antes
disso, seu “O Evangelho segundo Jesus Cristo” ganhou uma excelente montagem
teatral que teve bastante sucesso por aqui, embora tenha alimentado ainda mais
a ira da Igreja Católica contra o autor. Aliás já ouvi tantos impropérios acerca de sua
figura, e não podemos dizer que é sem motivo : Ele teve a desfaçatez de chamar
a Bíblia de um “Manual de Maus Costumes”
e se autodescrevia como “Comunista Libertário” ! Ele também não conheceu fãs entre os judeus ou em qualquer outra religião.
Não concordo com todas as suas
idéias ou vocações políticas, mas reconheço a honestidade de seu pensamento (às
vezes ingênuo) e seu gênio literário (contestado por reacionários e pseudo-intelectuais)
Lembrei-me imediatamente dele,
quando li recentemente um artigo no jornal que dava conta de que na atual
pré-disputa pela prefeitura da cidade de São Paulo, não havia uma única
proposta ou preocupação manifesta pelos problemas da cidade, as causas de sua
deterioração ou por soluções, ainda que parciais, para os cidadãos que têm suas
vidas pioradas pelo dia-a-dia de transporte ruim, trânsito caótico, lixo nas
ruas, enchentes que matam e destroem dentro das próprias casas, atendimento de
saúde precário, falta se segurança, má iluminação, buracos por todos os lados,
isto para citar apenas o que é mais visível. O artigo citava que as grandes
preocupações dos candidatos são as articulações políticas e os níveis de
rejeição para as campanhas de maior peso, como a presidencial. Para tanto,
oposição se junta com situação, inimigos “mortais” de ontem se unem em fotos e
falas, como se os eleitores fossem absolutos imbecis que devem guardar apenas a
última imagem, que a que interessa no momento. Aquilo que os partidos chamam de
“aliança política”, apenas dá uma idéia do quanto valem suas palavras e
propostas: nada. Nada na política atual é crível e o voto transformou-se
numa fraude, num cheque em branco que a população assina, dando plenos poderes
por quatro longos anos, para que o político faça o que bem entender, sem jamais
poder ser cobrado ou instado a pelo menos cumprir suas promessas de campanha. O
voto transformou-se numa espécie de “amansa corno” para a população, pois
sempre que há algum princípio de insurreição, ainda que apenas de protesto, a
velha Democracia é tirada do baú, através de sua pseudo-representante máxima :
a eleição. Este é um fenômeno mundial, basta analisar a baixa presença às urnas
nos países em que o voto é livre. Aqui, a democracia já começa a capengar pela
obrigatoriedade do voto mas, apesar dos problemas, o cidadão comum acaba por
ficar contente por viver num país onde a democracia de fachada tremula na ponta
do mastro do Tribunal Eleitoral.
Não temos equipamentos médicos
suficientes para tratar a população, mas temos urnas eletrônicas de última
geração; não temos escolas públicas de qualidade, algumas não tem sequer teto,
mas todas elas tem computador; não temos professores bem formados ou pagos para
viverem com o mínimo de dignidade, mas temos o congresso e o parlamento mais
caros do mundo; o transporte público funciona pessimamente no país inteiro, mas
a Receita Federal é uma das mais modernas do planeta. O Brasil vive em função
dos políticos e suas benesses, seus cargos garantidos pelo voto popular. Não
está indo bem ? Sem problemas, tentem na próxima daqui a quatro anos! Estamos
há muito tempo vivendo a crise da Democracia de Representação, pois os
políticos e partidos não representam nada mais do que seus interesses privados
e econômicos. Estamos emparedados por um
sistema político cuja única opção é procrastinar por mais quatro anos, na
expectativa de que um programa televisivo ou o futebol revele um “bom
candidato”. Popularidade é igual a “votabilidade”.
Saramago foi capaz de imaginar e
contar histórias sobre situações inusitadas, como no caso em que uma espécie de
cegueira “branca” tomou conta de todos os habitantes de uma cidade, como uma
epidemia e as conseqüências da desestruturação social decorrente (Ensaio sobre
a Cegueira) ou do homem que descobre que existe um outro igual a ele através de
um filme que alugou aleatoriamente (O Homem Duplicado), ou de um país em que as
pessoas repentinamente param de morrer (Intermitências da Morte), mas o romance
que mais me chamou a atenção foi Ensaio sobre a Lucidez. Penso que chamou minha
atenção, porque a idéia não é uma simples alegoria : é danada de boa ! – Pelo menos para marcar a
insatisfação popular com o sistema político vigente, que se autoprotege e se legitima
através do voto pseudo-democrático.
Num país imaginário, onde impera
a democracia representativa pelo voto, as autoridades se vêem diante de um fato
inusitado em pleno dia de eleições : ninguém compareceu às urnas para
realização do escrutínio. Após certo alvoroço, resolvem adiar o dia de votação
e no novo evento, para alívio das autoridades constituídas, a presença é
maciça. Contudo, nova surpresa estava reservada : Quase 80 % dos votos eram em
branco. A partir daí, as estruturas de poder
começam a ficar preocupadas e a se reunir freneticamente para encontrar uma
solução para o impasse, posto que os finais de mandato estavam próximos e ninguém
poderia ser empossado com aquele percentual de votos nulos. Novas eleições são
marcadas e o fenômeno se repete com intensidade ainda maior : mais de 80 % dos
votos são brancos.
O que se segue é uma crise
institucional sem precedentes, em que os governantes tentam pressionar a
população de todas as formas, deixando de fornecer serviços básicos de
transporte, limpeza e segurança, mas para o espanto de todos (aí aparecem as
tendências anarquistas de Saramago), o povo começa a se ajudar e realizar por
conta própria aquilo que antes dependiam da administração pública : começam a
limpar as próprias calçadas, a organizar caronas entre os populares, revezarem-se
na vigilância. Os antigos administradores, desesperados planejam se retirar do
país na calada da noite, quando todos estivessem dormindo, para decretarem
Estado de Sítio e fecharem as fronteiras impedindo que os insurretos recebessem
qualquer ajuda externa, na tentativa de sufocar o movimento.
Os desdobramentos da história são
cômicos, porém trágicos (como manda o pessimismo de Saramago), mostrando que a sede de poder dos humanos, uma vez
desbancada de seu trono, adapta-se rapidamente e utiliza-se de qualquer ardil
para retomar a relação de dominância. Assim acontece com a política, com a
corrupção, com as lutas entre facções criminosas ou disputas empresariais.
Este é um romance que vale a pena
ser lido, mesmo por aqueles que não apreciam Saramago e sua vasta obra, pois
trata de um assunto que é um verdadeiro tabu nos dias correntes : a validade do
voto e a possibilidade de mudança através de um sistema viciado e de cartas
sempre marcadas.
ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ - JOSÉ SARAMAGO - COMPANHIA DAS LETRAS - 325 PÁGINAS