segunda-feira, 11 de junho de 2012

FOME - KNUT HAMSUN

"Você sabe realmente o que é fome?"





Você acha que tem problemas ? Já passou fome alguma vez na vida ? Não aquela fome que dá porque naquele dia não almoçamos por qualquer razão ou aquela sensação de insatisfação que dá depois de algum tempo de uma refeição pobre de carboidratos e proteínas. Também não me refiro àquela fome assassina, terminal, típica das populações que se encontram sob “genocídio estático”, como alguns países africanos, ou dos “genocídios ativos” como nos casos de campos de concentração ou cercos como o da Ucrânia no começo do século XX, ou ainda das populações que ficaram privadas de alimentos por ocasião de alguma catástrofe natural.


Refiro-me a um tipo específico de fome, fruto de um estado de pobreza extrema que se não chega a matar,  é persistente, diária. Uma carência constante que faz com que nossa mente deambule entre estados de bipolaridade induzida – no começo da fome, nos tornamos mais alertas, pensamentos ágeis e um tanto paranóicos, nossos movimentos são mais rápidos e aparentemente nos encontramos num estado de prontidão física e intelectual ímpares. Com o passar do tempo, nossa energia cai, o estômago começa a doer de fato, se contraindo sobre o vazio num espasmo desconfortável. Nesta fase, nossos pensamentos já não são tão ágeis como na fase anterior, mas começam a se focar em fantasias específicas como um bom prato de comida : nos tornamos quase delirantes enquanto nosso desconforto físico vai aumentando. Mais algum tempo sem alimento, o desconforto físico vai diminuindo e nossos movimentos vão ficando mais lentos, econômicos e nosso estado mental sofre um fenômeno que eu classifico como “deslocamento” – excelente para experiências transcendentais como meditação. Quando finalmente conseguimos ingerir algo, dependendo de quão substancioso é esse algo, podemos aprofundar a letargia de nosso corpo que estará completamente envolvido em processar o alimento, ou voltarmos para o estado de prontidão paranóica quase que imediatamente. Este último caso, obviamente, é aquele em que nossa refeição é absurdamente restrita, que nos afasta por mais alguns centímetros da beirada abismal da inanição, mas não nos deixa satisfeitos nem seguros. A fome constante não muda apenas o corpo de uma pessoa, mas também sua mente e a repetição deste estado nos leva a uma nova relação com a realidade – nos tornamos mais resistentes e com idéias mais fixas sobre o como as coisas devem funcionar, ainda que estas idéias sejam, na maioria das vezes, delirantes, inconsistentes aos olhos de um ser devida e regularmente alimentado.


Na minha visão, é sobre esta fome, da qual ele próprio padeceu, que Knut Hamsun constrói seu romance “Fome”.  Tudo indica que Hamsun fez da personagem principal e quase única da trama, seu alter ego perfeito, que viveu a trama exatamente como ele teria vivido numa situação análoga - e de certa forma viveu, pois há algumas semelhanças entre a trajetória do  protagonista e a do próprio autor. Segundo sua biografia, Hamsun foi estivador, lenhador, marinheiro, sapateiro, condutor de bonde, jornalista, cuidador de frangos e escritor, ganhador do Premio Nobel de 1920. Conheceu de perto a vida errante e solitária em busca de seu sustento. O escritor norueguês foi controverso em tudo que fez e tendo horror à cultura ocidental, chegou a nutrir simpatia pela Alemanha nazista e embora jamais tenha se filiado ao partido, sua idéias a respeito dos nazistas o levaram à prisão em 1947. Morreu aos 92 anos, deixando uma obra contundente, com personagens marcantes. Dizem que deixou este mundo "sem remorsos". 

KNUT HAMSUN

Narrado em primeira pessoa, a história se desdobra em 1890, com o protagonista percorrendo a esmo as ruas de Cristiania (atualmente Oslo) na Noruega, munido apenas de suas vestes rotas, um maço de papéis que ele chama de caderno e um toco de lápis, com o qual tenta escrever um artigo que possa ser vendido a algum jornal, com o objetivo de obter recursos para pagar o aluguel do paupérrimo quarto que ocupa e comer um prato de comida, uma vez que já nem se lembra qual foi a última vez que comeu. No filme homólogo, baseado no romance de Hamsun, o protagonista recebe o nome de Pontus, interpretado pelo magnífico Per Oscarsson,  mas no livro, seu verdadeiro nome não é declinado.


PER OSCARSSON


O contraste de sua aparência lastimável com a altivez de suas atitudes, nos faz lembrar da obra de Cervantes – uma espécie de Quixote urbano, solitário, sem ajudante ou cavalo e portador de uma nobreza e um senso moral totalmente incompatíveis com sua desesperadora condição. Seu toco de lápis é sua lança e seu caderno o escudo com os quais tenta enfrentar a dura realidade que o cerca, através de uma visão e uma ética muito próprias. Numa passagem, vemos o já despossuído escritor numa loja de penhores, colocando seu desgastado colete no prego, para obter umas moedas não para fazer o que seria uma mais que tardia refeição, mas para dar de esmola a um mendigo coxo ! Seguimos o desespero contido (que para o leitor se torna ainda mais angustiante) do protagonista ao constatar que seu toco de lápis ficara no bolso do colete, recém empenhado e seus esforços para recuperá-lo de forma digna.


A trama segue com a luta cotidiana deste arremedo de pessoa que tenta por toda sorte, manter sua dignidade e sua sanidade contra um organismo que o açoita de dentro para fora, reclamando algum alimento. A falta de dinheiro e portanto de abrigo e comida, transtornam sua mente, fazendo-a oscilar entre a crueza de sua realidade imediata e os devaneios de uma vida palaciana, requintada, junto com sua Iaiáli, nome dado por ele a uma jovem que conheceu de passagem e com quem ensaiou um romance fracassado. Ele necessita de sua mente para escrever os artigos que lhe rendem algumas parcas coroas para se alimentar, mas por falta de alimento, sua mente mal consegue se concentrar fechando um perverso círculo vicioso.




Ele sofre não apenas por sua carência, mas pela impossibilidade de auxiliar outras pessoas que encontra pelo caminho, tão necessitadas quanto ele, como se tivesse para com elas, uma dívida irresgatável. Em vários pontos de sua trajetória, está convencido de que Deus o está destruindo sistemática e deliberadamente, pois parece que o mundo inteiro, suas bobagens, regras e burocracias não estão minimamente preocupadas com a emergência de sua situação. Em algum momento do livro ele registra :   “ Eu observava muito bem que, se jejuasse durante um período bastante longo, era como se meus miolos me escorressem suavemente do cérebro, esvaziando-o. A cabeça se tornava leve, como que ausente; já não lhe sentia o peso sobre os ombros; e, se olhava para alguém, tinha a sensação de que meus olhos estavam fixos, arregalados.”


Penso que a leitura deste livro nos faz rever uma perspectiva humana, da qual a maioria que o lê, se encontra afastada ou dela jamais se aproximou : como nossos pensamentos e necessidades cotidianas são absolutamente enganadoras – um revestimento da miserabilidade de nossas necessidades básicas, que começa a cair apenas algumas horas depois de sermos privados de alimento, água ou sono .    É absolutamente incrível como um ser bem alimentado, hidratado e bem dormido, pode imaginar as mais complexas relações cósmicas, construir planos, fazer arte, construir significados e erigir impérios em nome de seus ideais, de seus pensamentos, e mais incrível ainda, ver todos estes constructos se desmontarem, os edifícios de significados derreterem como bonecos de neve expostos ao sol de verão, a razão se toldar e o discurso se deteriorar em fábulas alucinatórias diante da fome contumaz . Uma pessoa bem alimentada é capaz de pensar em programas sociais, abrigos e toda a sorte de soluções para os desvalidos, mas parece ser incapaz de perceber e resolver a situação de um ser que está com fome concreta, bem à sua frente. Para os bem alimentados, a pobreza extrema é um conceito, não uma pessoa que necessita de alimento imediatamente! 
Apesar da dureza do texto de Hamsun, a personagem criada por ele, é resistente e goza de uma liberdade inacessível para a maioria das pessoas que possuem coisas e são possuídas por elas. A total falta de posses , o imediatismo de suas preocupações básicas e a falta de vínculos, permitem ao protagonista mover-se pela vida e pelo mundo como um aventureiro, único senhor de seu próprio destino.  


FOME - KNUT HAMSUN - GERAÇÃO EDITORIAL - 171 PÁGINAS - Destaque para a tradução primorosa de Carlos Drummond de Andrade.


FOME (SULT) O FILME
O filme baseado nesta obra, foi lançado em 1966 com a interpretação magistral de Per Oscarsson, que lhe rendeu o prêmio de melhor ator em Cannes naquele ano. Lançado recentemente no Brasil pela Platina Filmes, o DVD conta com excelentes extras : o depoimento do diretor Henning Carlsen, e um bate papo entre a neta de Hamsun - Regine Hamsun e o escritor Paul Auster, acerca da obra. 




2 comentários:

  1. Creio que existem tipos de fome que, apesar de não trazer a morte do corpo trazem a morte da alma, do espírito, da crença sobre o ser humano e a dor de se reconhecer como parte dele.
    Essa é uma fome escondida nas entranhas que ninguém vê, mas que corroi por dentro como um virus inatingível.A fome física se satisfaz com qualquer naco de pão,mas a fome da alma que nasce quando todas as esperanças e sonhos cultivados ano após ano de nossa existência,são bombardeados pela sociedade insana. A dizimação é irreversível pois os pedaços são tão minúsculos que não poderão ser reconstruidos. Fome de justiça,de amor, de esperança, de honestidade, de ética social, é incurável.
    Exije algo impossível de se alcançar, o afeto entre os humanos.

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    1. É verdade, existem vários tipos de carência que são denominadas genericamente como "fome", mas que são decorrentes da própria condição humana. O que vejo é que somente com a fome do corpo resolvida, ainda que com um mísero pedaço de pão, podemos ter acesso a outros tipos de fome. Como no clássico de Hamsun, quem vive com uma fome corporal persistente, ainda que não fatal, perde a sanidade e já não é mais capaz de transcender a não ser através do delírio e da fantasia. Neste sentido, a pirâmide de Maslow é soberana.

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