quarta-feira, 25 de abril de 2012

O ABISMO DE NIETZSCHE

“ Se olhares demoradamente para dentro do abismo, o abismo olhará para dentro de ti”. - FRIEDRICH NIETZSCHE




Escrever sobre "Quando Nietzsche Chorou", trouxe-me os velhos questionamentos da marreta do filósofo, presente em sua obra, que tive o prazer de desfrutar ainda na juventude. Lembrei-me de duas idéias de Nietzsche que sempre me perturbaram : a do abismo e a do eterno retorno. Resolvi dedicar este post como uma extensão daquele último sobre o tema, muito mais como uma reflexão despretensiosa, fruto de uma experiência própria contemplando o fundo do abismo.  Nietzsche não diz apenas “olhar para dentro do abismo”, mas “olhar demoradamente para dentro do abismo”, ou seja olhar o tempo suficiente para que nossos sentidos se quedem diante da inutilidade de tentar divisar e referenciar o nada. Frente à cessação da busca do referencial externo, nos tornamos o próprio abismo, cuja visão retorna no sentido oposto, livre dos ruídos dos sentidos, para nos darmos conta daquilo que habita nosso interior : não as coisas conscientes, que estão disponíveis a um simples chamado da memória, nem aquelas das quais nem sequer suspeitamos da presença a maior parte do tempo, mas daquilo que ainda as antecede, uma não linguagem, uma harmonia com o não ser.



Ao olharmos demoradamente para dentro de um abismo, deparamo-nos com o nada, com o rompimento da gestalt que permite nossas percepções  : não temos mais uma figura e o fundo nos engole, se apossa de nosso entorno para em seguida invadir-nos até a alma. Depois de remoer um pouco esta ideia, cheguei a um pensamento derivado que é “ A consciência é o ponto de estrangulamento de um único abismo”.





O estrangulamento advém pois desta injunção que nos dá ilusão de um limite real de algo que é contínuo. Este estrangulamento é temporário, leva o tempo de uma vida, antes do retorno ao contínuo, àquilo que não tem limite nem presença. Este olhar para dentro de si começa como numa espiral, onde primeiro tentamos entender, dar significado, para lentamente ir perdendo completamente os referenciais lingüísticos, simbólicos, ficando expostos a um sentir sem palavras, sem imagens sem conceitos. Não conseguimos pensar o impensável e sem uma linguagem que nos faça sentido, que tenha significado, encontramos o nada absoluto. Estamos irremediavelmente presos aos limites de nossa linguagem e o que possa haver além dela, para nós se apresenta apenas como o nada. Talvez este seja o princípio do Eterno Retorno de Nietzsche : Encontramo-nos no nó de uma ampulheta, que é nossa consciência, condenados a assistir a passagem dos mesmos grãos de areia (aquilo que nossa linguagem pode significar) de um lado para outro da ampulheta, sem jamais podermos divisar o que há fora da ampulheta, que apenas intuímos (mas só    conseguimos imaginar como se também fossem outros arranjos de grãos semelhantes aos grãos de areia disponíveis na ampulheta).




Se demorarmos o tempo suficiente olhando para o fundo do abismo, o sentir conhecido, os ecos corporais vão se tornando distantes, abrindo espaço para sentires cada vez mais estranhos, como se estivéssemos nos projetando no vazio... o mesmo vazio sem referencial que insistíamos em tentar divisar no fundo sem fundo do abismo. 




É como se de alguma forma, retornássemos ao ponto de partida. Um ponto de partida que é tão de partida quanto é de chegada, portanto um contínuo... Um plano contínuo onde a única coisa que se interpõe entre o dentro e fora é a nossa consciência, nossa noção de corpo físico contemplante. A sensação decorrente pode ser chamada de "sentido de presença", numinosidade ou qualquer outro nome que se queira dar, inclusive pura e simplesmente "consciência". Parece-me que o limite de nossa consciência está vinculado ao quão estrangulado é este ponto onde moram nossas percepções : se for por demais apertado, perdemos a conexão com aquilo que somos, interrompemos o simples fluxo do fora e dentro, vendo-os como coisas absolutamente separadas. Se por outro lado, for por demais frouxo, nos aproximamos dos ascetas que buscam o Nirvana e perdemos igualmente a conexão com qualquer coisa que tenha significado. Sobre esta busca dos ascetas... penso que há uma pressa injustificada : o rompimento de nosso elo de consciência é líquido e certo. É apenas uma questão de tempo. Talvez devêssemos apreciar e conhecer os grãos de areia de nossa ampulheta, sabendo que são os mesmos, de um lado e de outro e que basta estarmos atentos para vê-los passar diante de nossos olhos.



11 comentários:

  1. Belo post. Se não for uma heresia lhe sugerir um livro que tem um discurso semelhante, mas com outra máscara:
    http://pt.scribd.com/doc/55450179/A-eliminacao-do-tempo-psicologico-J-Krishnamurti-e-David-Bohm#outer_page_9
    Ou eu muito me engano ou o abismo para esses pensadores chama-se A Base.
    Um abraço do observador.

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    1. Obrigado Thiago ! Vou dar uma olhada no link, mas de antemão digo : Não é heresia nenhuma ! Aprecio muito as idéias de Krishnamurti e de David Bohm, sobretudo no "O Pensamento como um Sistema" deste último, por ocasião de um seminário na Califórnia nos anos 90, e foram muito bem lembrados por você. Gurdjeff também falava do estado de atenção e da suspensão da passagem do tempo e o mito de Sidartha relata aquele episódio em que ele estava em meditação profunda há anos, quando de repente ouviu um músico falar para seu discípulo que se a corda de seu instrumento estivesse por demais apertada, ela se romperia e se estivesse por demais frouxa, o instrumento não tocaria - analogia que usei para descrever os estados de consciência. O mais legal disto é que a experiência que tive contemplando o abismo é exatamente esta e pude constatar que minhas impressões são semelhantes a de outras pessoas que puderam registrá-las ao longo da história. É claro que alguns, os mais notáveis, agregam a esta experiência uma epopeia explicativa e a torna uma escola, um caminho, uma ciência, um dogma ou outra coisa qualquer que visa atrair seguidores. Prefiro o fenômeno puro e simples e como fenômeno, uma experiência absolutamente pessoal que só é parecida com a de outros porque temos os mesmos grãos de areia linguísticos pra expressá-las. Aproveito a oportunidade para dizer que seu Blog é fantástico - além de muito bem elaborado é uma bomba sensorial de muitos gigatons que muitas vezes me faz viajar.
      Abraços

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    2. Amei esse post e os comentários, mto bom! Parabéns pelo conteúdo e por compartilhar!

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  2. Primeiro quero elogiar as imagens utilizadas em seu post. São muito criativas para emoldurar seu texto. Me sugerem quadros.Quanto ao conteúdo quero dizer que, entre a luz e o abismo estamos nós pobres mortais. Concordo que deveríamo viver apenas o presente e que não deveríamos nos debruçar sobre perdas, vazios e fracassos. Mas por outro lado, usando a idéia do abismo, quando nos debruçamos sobre nossos próprios fracassos, como se rodassemos o ponteiro do tempo para trás,muitas vezes nos espantamos com as atitudes simplórias que tomamos em muitas situações e que, inevitalmente, nos conduziria à fracassos de toda espécie, material ou afetivo.Mas parece que, por alguma razão da espécie, a repetição é inevitável, a de olhar para a luz e depois para o abismo.O namoro é eterno! O que seria da luz se não houvesse o escuro? Não seria mais luz! O que seria do abismo escuro se não houvesse a luz para reconhece-lo? Eis a questão!

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    1. Obrigado ! Confesso que dá algum trabalho achar a imagem mais adequada para emoldurar um ideia, mas é sempre um prazer. Pois é, se estamos condenados à repetição, justamente pelas limitações sensoriais e linguísticas e consequentemente de pensamentos, penso que perde um pouco o sentido a noção temporal : estamos sempre contemplando os elementos do passado o que significa que eles estão sempre presentes e são constitutivos do presente. Dá a impressão que o tempo não passa, nós passamos por ele, nossa consciência é que trafega sobre esta estrada de elementos constituintes da realidade e nos dá a ilusão da passagem do tempo.Tudo o que conseguimos são rearranjos provisórios destes elementos, mas não conseguimos trazer elementos que já não estejam presentes entre os nossos grãos de areia dentro da ampulheta.

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  3. Penso que, todo o processo de amadurecimento pelo qual todas as coisas, inclusive os humanos passam durante seu percurso de tempo, vincula-se à experiência que o externo os expõe. Eu chamaria sua ampulheta de receptáculo das experiências. Sempre que uma nova experiência é apresentada, fica presa por alguns instantes no gargalo até que a "digestão" seja totalmente integrada e consumida como parte de nós mesmos.

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    1. Esse gargalo é que eu chamo de consciência - a percepção da passagem destes elementos, ou dito de outra forma de nossa passagem por estes elementos, que se encontram dentro e fora e que só adquirem algum significado por causa deste gargalo, onde reside a linguagem que possibilita o sentido.

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  4. Estou com saudades dos seus blogs!!!!!!!

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  5. Perfeita sua analogia da fronteira de nossa consciência com o estrangulamento de uma ampulheta. Não só pela imagem relativa à imensidão de grãos antes e depois, dos quais só enxergamos os que esbarram nas paredes do estreito, como também pela referência ao tempo que a ampulheta gera, o tempo criado para a travessia.

    Pedindo perdão pela racionalização de uma discussão tão bela em sua irracionalidade, esse estrangulamento da ampulheta comporta-se tal qual o horizonte de eventos teorizado por Einstein, a fronteira do espaço-tempo que separa a gravidade infinita em um buraco negro da imensidão das estrelas conhecidas, da segurança do lado de cá.

    Mas concordo com você, prefiro também contemplar o abismo como um fenômeno puro e simples, onde certamente não precisamos da física quântica para admirar. O esvaziamento das fórmulas, o esgotamento das formas, o simples imergir dos olhos demoradamente, tendendo ao eterno, nas chamas da lareira ou nas ondas do mar já podem nos brindar com a percepção inconsciente de nós mesmos, da chama e do mar nos observando, nos sugando para dentro.

    Só assim, esgotados pela gravidade infinita (lá vem Einstein de novo...), podemos finalmente conhecer o que há em nós além do que nos fazemos acreditar que há. E só então, uma vez conhecido nosso real contexto, poderemos decidir o que fazer com ele.

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  6. Vejo que já faz um tempo que este texto foi postado, mas só me apareceu agora. Excelente texto! Você conhece o livro de Jed Mcknna "Iluminação Espiritual"? Esta experiência de contemplar o abismo a que se refere me parece muito semelhante à experiência do "não-eu", do mergulho à verdade, no vazio, descrita no livro, e que muito tem me intrigado.

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  7. Interessante essa analogia da ampulheta
    Da igualdade dos dois lados
    Sendo um decifrável e outro obscuro
    (Se não interpretei errado)

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