quinta-feira, 1 de março de 2012

BARTLEBY, O ESCRIVÃO – UMA HISTÓRIA DE WALL STREET

" E SE O MELHOR A FAZER É NÃO FAZER ?" - Eliseu Gonçalves


Este conto escrito por Herman Melville me deixou de cabelos em pé, pois me deu a noção de quanto uma atitude, uma simples e única atitude pode subverter toda a ordem do "Universo Conhecido" !! A comparação feita por Modesto Carone desta obra às de Kafka, sobretudo “O Castelo”, “O Processo” e “O Artista da Fome” se justifica não apenas pelas coincidências ou analogias que podem ser feitas a partir das passagens destas obras, mas sobretudo pela a capacidade que elas têm de deixar o leitor angustiado, meio que sufocado ao se projetar em suas personagens. Uma situação limite que clama por uma catarse, uma explicação, uma saída que não chega nunca. O que mais me impressiona que de certa forma, Melville traz de seu esplêndido Moby Dick  o mesmo retrato alucinado da obstinação levada às raias da auto-aniquilação, só que numa história aparentemente prosaica, sem mares revoltos, baleeiros, marujos e todo o clima de aventura em que vive o capitão Ahab, cuja obsessão é caçar a gigantesca baleia branca Moby Dick que lhe arrancara uma perna no seu primeiro encontro. A diferença a meu ver, é que se em Moby Dick, toda a tensão e obstinação estão voltadas para a ação desenfreada, uma mistura de heroísmo e vingança urdida nas labaredas do amor e ódio do velho marujo com aquele animal espetacular – uma ligação pessoal que arrisca a embarcação e todos que estão dentro dela – no caso de Bartleby a tensão e a obstinação estão focadas  na NÃO AÇÃO, na escolha simples e deliberada de não fazer.

















Infelizmente, como  muitos, Herman Melville só foi alçado ao panteão dos grandes escritores universais, depois de sua morte. Seu sucesso em vida foi muito modesto e não chegou a desfrutar do impacto que Moby Dick teria a partir do século XX. Bartleby foi escrito e publicado anonimamente em 1853, em duas partes, numa revista americana, mas assim como Moby Dick, acabou por receber enorme reconhecimento no século seguinte : teve duas versões para cinema (1970 e 2001), além de adaptações para teatro – aqui no Brasil, a impagável e única Denise Stocklos fez recentemente uma apresentação do texto por ela mesma adaptado. 

  
Bartleby é um escrivão contratado por um escritório de advocacia situado em Wall Street, centro financeiro de Nova York, e que tem como função a copiagem e arquivamento de documentos, serviço que desempenha, a princípio, com afinco. O narrador da história é um velho advogado, dono do escritório, que tem um negócio rentável na assessoria de hipotecas e títulos de propriedade de homens ricos. Seu escritório possui uma equipe de dois escrivães e um office boy cujas peculiaridades lhe instaram a contratar mais um escrivão na esperança de equilibrar o quadro com uma pessoa calma e tranquila: Bartleby !
O que ocorre é que num dado momento, sem qualquer explicação, sendo solicitado a realização de uma tarefa de rotina, Bartleby simplesmente responde : “Eu preferiria não fazer”.  Para seu desespero, e dos leitores, o advogado não consegue arrancar mais nada de Bartleby , além da repetição crescente desta frase : “Eu preferiria não fazer” . Bartleby vai piorando a cada dia, fazendo cada vez menos o trabalho que deveria executar e deixando-se estar sentado numa mesa de fronte a uma janela, que dava para uma parede de tijolos, completamente alheio aos pedidos do chefe ou de seus colegas.  O velho advogado tenta de tudo para entendê-lo e propor alguma ajuda, mas Bartleby continua hermético, respondendo com seu mantra a toda e qualquer indagação. Ao ser despedido, sua resposta foi a mesma e não só se recusou a abandonar o escritório como também passou a morar lá, passando todas as noites entre móveis e documentos. Numa última e desesperada tentativa, o advogado convida Bartleby para morar provisoriamente em sua residência, sair do escritório e ir com ele para casa, para depois acharem uma solução melhor – “Eu preferiria não fazer”. Esgotadas todas as tentativas, e sob ameaça de arruinar a reputação do escritório com aquele morador bizarro, o advogado opta por uma alternativa radical : muda o escritório de endereço, deixando Bartleby sozinho no imóvel antigo, agora vazio.


O final da história é dramático e causa bastante impacto, pois embora o caso de Bartleby revele algum tipo de transtorno mental, fica também evidente como nosso mundo é organizado de tal forma, que quando um ato totalmente não planejado e resistente ocorre, faz desmoronar todo o edifício sob o qual construímos nossa realidade.
A resistência doentia da não ação de Bartleby na vida do advogado tem um paralelo muito interessante na história da humanidade, que ocorreria quase um século depois, também envolvendo um advogado, que de doentio não tinha nada : o fenômeno Mahtma Gandhi para os colonizadores ingleses na Índia. Num mundo atropelado pela velocidade da ação, onde ser rápido é melhor do que ser bom ou ter qualidade, o conto de Melville traz algumas reflexões importantes : E SE DISSERMOS NÃO ? E SE PREFERIRMOS NÃO FAZER ALGO QUE JULGAMOS INADEQUADO, INDEPENDENTE DO CÓDIGO SOCIAL VIGENTE ?  E SE RESISTIRMOS ? E SE O MELHOR A FAZER É NÃO FAZER ?
  
Esta é uma das facetas encantadoras da literatura : Mesmo as histórias mais bizarras, dizem muito sobre os humanos e muitas vezes, abrem perspectivas que nosso automatismo diário é incapaz de enxergar.

Destaque para a edição sensacional da Editora Cosac Naify – a qual admiro a cada lançamento – cujo exemplar resiste a ser lido : “Eu preferiria não fazer” -  vem com a capa costurada e as folhas dobradas e impressas por dentro de tal maneira que é preciso primeiro descosturar a capa e depois separar as folhas para se ter acesso ao conteúdo. A editora incluiu uma “faca” plástica para fazermos este trabalho antes de iniciarmos a leitura. Nunca tinha visto uma edição que fosse uma espécie de “poesia concreta” da obra. Note-se que na tradução de Irene Hirsch , ela prefere usar “Acho melhor não” no lugar de “Eu preferiria não fazer”, mas isso não compromete em nada a excelente tradução. Modesto Carone assina o posfácio desta edição, que a meu ver enriquece-a muito. 


BARTLEBY, O ESCRIVÃO - UMA HISTÓRIA DE WALL STREET - HERMAN MELVILLE - EDITORA COSAC NAIFY  - 46 PÁGINAS.






CAPAS DOS FILMES DE 1970 E 2001 

5 comentários:

  1. Além da apresentação do livro ser bizarra, o que chamou muito a minha atenção, pois ela esta totalmente pertinente à estória, creio que o autor quiz quebrar paradigmas sociais e soube fazê-lo com maestria!
    Quando se esta lendo, dá uma vontade de virar aquele escrivão, chutando tudo para o alto e ficar morgando sem compromisso algum com a turba.
    Conheci uma pessoa assim na minha adolescência que dava inveja de ver sua calma diante de tudo, tanto o bom como o ruim, a reação era a mesma. Creio que deva viver até hoje, porque o stress não fazia parte de sua vida, jamais!!!!!
    Adorei seu comentário.

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    1. Pois é, somos desde cedo adestrados a agir, agir e agir. Agir é movimento e movimento é vida... Poucas vezes questionamos estas idéias. A maioria das pessoas, por exemplo, não sé dá conta da inutilidade da maioria das coisas que faz na vida - quando pensam sobre isso, o que é raro, imaginam uma importância e um significado para suas rotinas tolas e aceleradas que são absolutamente desprezíveis no contexto geral da vida. O humano nasce, cresce e morre, como uma flor ou qualquer outro ser vivo, mas tem a capacidade de inventar uma porção de fantasias neste breve espaço de tempo. O que chama a atenção é que são só FANTASIAS, significados que nos fazem esquecer de que vamos morrer e daí vem a questão : Porque escolher as piores fantasias ? Porque aderir à movimentação tola, burocrática e anódina que inventamos para justificar nossa existência e ocupar nosso tempo ? Bartleby é a concretização de um extremo, mas ele existe escondido em cada um de nós, manisfestando-se todas as vezes em que concluímos que o melhor a fazer diante de uma situação, é nada...

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    2. Acho que esse "TER QUE" esta inscrito no nosso gen. Apesar de parecer totalmente desnecessário, o ter que ir, que fazer,nos tirou da caverna e o stress veio daí.

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  2. Bartleby é meu xodó. Grande texto. Impressionante como o sistema nos esmaga e comanda, a ponto de não termos coragem de dizer NÃO. Detalhe: Bartleby diz não de forma muito sutil, porém contundente. Revolta passiva. Bárbaro.
    Escrevi sobre esse livro no blog também, comparando com o filme The Wall, originado do disco da banda Pink Floyd. Dê uma lida, nossos textos se cruzam.

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    1. Excelente analogia ! De fato, nossos textos se cruzam e lhe confesso que não havia feito esta ligação, embora tenha assistido (há muito tempo, é verdade) ao filme e gostado muito - aliás gosto muito de praticamente tudo que o Pink Floyd fez. Concordo com a comparação que você fez que no caso de Pink, ficamos sabendo de suas dores e traumas ao longo de sua turbulenta trajetória, que são comuns a grande parte da humanidade - perdas do amor e da proteção, sufocamento pela massificação e doutrinação violentas, traição, guerra, mãe opressora, etc. O que torna Bartleby mais angustiante é justamente o silêncio acerca de seus motivos... eles estão implícitos. O que Bartleby esconde, Pink revela e talvez por revelar, seu muro acabe por ser destruído : sua imaginação faz a catarse através da destruição de seu apartamento e a tricotomia total de seu corpo. Depois disso, seu muro é derrubado pela sociedade - Pink é desnudo e vive. Talvez sem seu muro, transforme-se num Bartleby, cujo muro não pode mais ser destruído, posto que não dá pistas de sua localização, não tem tijolos, não tem objetos que possam ser identificados, apenas sua presença massiva e absoluta como o Monólito de Kubrick em 2001 - Uma Odisseia no Espaço (lembra ?) Bartleby é a voz que não sai da garganta, a raiva sem objeto, a catarse que não encontra forma, o desconforto que não é identificado, a desrazão da existência... Penso que temos ambos dentro de nós: algo de Pink e de Bartleby e nosso destino está intimamente ligado às proporções desta mistura. Quando o muro de Pink, em nós, é destruído, o muro de Bartleby nos destrói, nos empurrando cada vez mais para o centro de nós mesmos, como o nascimento de um buraco negro.
      Seu texto me inspirou a assistir a este filme novamente, sob novas lentes !

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