domingo, 11 de março de 2012

CRÔNICA DE UM VENDEDOR DE SANGUE – YU HUA



"Nascemos com o incrível dom de conhecer a realidade, a despeito do que nos contam sobre ela. Não são os livros nem as versões oficiais que nos mostram como as coisas são, mas nossa própria inteligência, desde que aprendamos a confiar nela." - Eliseu Gonçalves


O século XX não foi bom para o povo chinês – guerras, revoluções e fome ceifaram milhões de vidas, tingindo de vermelho para sempre as lanternas que iluminam o futuro da China. Desde a revolução de 1911 que acabou com mais de 4 mil anos de dominação das dinastias, o povo chinês viveu toda a sorte de dificuldades na tentativa de se erguer como nação. Guerra civil, invasão japonesa em 1937 e a Revolução Comunista a partir de 1949 e Mao – um capítulo à parte na história da China que trouxe grandes esperanças antes de se transformar num verdadeiro terrorismo de estado a partir da segunda metade do século passado.


Admiro muito o povo chinês sobretudo pela sua capacidade de superação da adversidade, sua resistência à fome, ao desconforto e à falta de privacidade mínima. Conheci na atualidade vários chineses que vivem no Brasil, sem conhecer o  idioma, trabalhando vinte horas por dia e se aglutinando de dez a quinze pessoas num apartamento de 70 m2. Adotam um nome “brasileiro” e conseguem se comunicar apesar de toda a dificuldade. Vivem numa condição muito ruim, mesmo pelos nossos padrões terceiro-mundistas, e isto nos faz pensar que eles estão tentando fugir de algo bem pior. Outro dia por acaso, estava navegando na internet e encontrei uma notícia que me deixou chocado : que o destino ou paradeiro do rapaz que, no final dos anos 80, se postou na frente de uma fileira de tanques na praça da paz celestial, impedindo-os de prosseguir apenas com seu corpo, sem qualquer tipo de arma ou atitude agressiva,  continua sendo um mistério, depois de mais de vinte anos ! Era apenas um movimento estudantil, pacífico que se rebelava contra a tirania comunista e que foi covardemente massacrado por tanques e pelo exército. Há quem diga que o mesmo foi fuzilado, outros que foi preso e outros ainda que dizem que ele está vivo, bem e morando em Taiwan. A falta de informação confiável continua sendo uma arma poderosa do regime. Interessante pesquisar que na época, um eminente professor de relações internacionais da USP - a mesma universidade que combate a PM em seu campus e que repudia qualquer ação policial sob qualquer justificativa - defendeu a ação do governo chinês, como sendo "essencial" para a manutenção do controle social do país. A foto deste episódio está listada como uma das mais importantes do século XX.


A arte chinesa é absolutamente encantadora e a literatura certamente faz parte deste contexto. Yu Hua nasceu em Zhejiang, em 1960. É contista, ensaísta, e autor de romances. Em 2002, tornou-se o primeiro escritor chinês a receber o James Joyce Foundation Award. “Viver”, publicado em treze países, foi agraciado na Itália com o prêmio Grinzane Cavour, em 1998. Sucesso de crítica e público no mundo todo, ganhou versão cinematográfica dirigida por Zhang Yimou, premiada em Cannes e no Globo de Ouro. Filho de pai e mãe médicos, Hua passou sua infância em hospitais, onde assistia diariamente as enormes filas de camponeses que se formavam diante dos bancos de sangue para aumentarem sua escassa renda em pleno vigor da Revolução Cultural Maoísta. Foi nesta experiência que se inspirou para escrever “Crônica de um Vendedor de Sangue”, traduzido e publicado no Brasil pela Companhia das Letras no ano passado.
O livro acaba por ser um retrato de um povo, de uma época onde a fome, a escassez, a falta de trabalho e o despotismo do exército vermelho sob comando do Grande Timoneiro, despertavam o pior e o melhor do humano.


O romance conta a história de Xu Sanguan, um operário de uma fábrica de seda, cujo trabalho era empurrar um carrinho com casulos de bicho da seda para as operárias fiandeiras, durante todo o expediente.  Neste período, conhece dois camponeses que revelam uma atividade extra que praticam, totalmente estranha para Xu Sanguan : vendem sangue de tempos em tempos para o banco de sangue do condado, comandado pelo chefe de sangue Li, um funcionário público nojento e inescrupuloso que faz da doação de sangue um negócio para tirar vantagens pessoais. Para tanto, os dois revelam a Xu Sanguan, todos os macetes desta atividade, no intuito de receber o máximo possível, preservando suas vidas. Eles bebem várias tigelas de água antes da doação, para afinarem o sangue e terem mais para doar, o que lhes rendem o equivalente a seis meses de trabalho no campo. Depois da doação, vão ao restaurante Vitória comer um prato de fígado de porco frito e duas doses de vinho de arroz amarelo para se recomporem. Xu Sanguan aprende que esta atividade pode salvá-lo nos tempos difíceis e que o que ganhava com a doação era dinheiro de sangue e não dinheiro de suor, e que deveria ser gasto apenas com coisas muito importantes. Xu Sanguan conhece Xu Yulan,  uma moça da vizinhança que era conhecida por fritar roscas pela manhã, e decide se casar com ela, embora ela já estivesse comprometida com outro rapaz, He Xiaoyong, que lhe fazia a corte cobrindo seu pai de favores. Ainda assim, Xu Sanguan consegue seu intento e acaba constituindo com ela sua família, com três filhos homens.


A descrição da vida das pessoas daquele vilarejo é prosaica, revelando a simplicidade de suas vidas, seus parcos pertences, seus casebres cujas mobílias enchiam um triciclo. A vida de Xu Sanguan e Xu Yulan é marcada por desavenças e turras de ambos e se agrava quando Xu Sanguan desconfia que seu primeiro filho, Yile, não se parece nada com ele, mas com He Xiaoyong, o que mais tarde será confirmado : He Xiaoyong é o verdadeiro pai de Yile. Não obstante a infidelidade da esposa, a família continua em sua luta diária pela a sobrevivência e os acontecimentos vão fortalecendo as relações de Xu Sanguan com Yile, tornando-o seu filho predileto. Xu Sanguan acaba sendo obrigado a vender seu sangue inúmeras vezes para tentar salvar sua família da miséria e do desastre financeiro que parece não ter fim.


As coisas pioram ainda mais quando advém a Revolução Cultural, perseguindo qualquer pessoa que tivesse qualquer propriedade tornando-as  inimigas do povo, a justiça oficial e os magistrados foram defenestrados e substituídos pela justiça popular, onde qualquer pessoa do povo podia escrever suas acusações sobre qualquer outra pessoa, colá-las nas paredes e nos postes e exigir que fossem justiçadas por tribunais populares.  A família de Xu Sanguan é atingida duplamente : Xu Yulan é acusada de prostituição (por causa de seu primeiro filho com He Xiaoyong)   e obrigada a ficar de pé, diariamente, em praça pública com uma tabuleta escrita “Prostituta”, pendurada no pescoço à disposição de seus “juízes”. Além disso, o Grande Timoneiro exige que as famílias enviem suas crianças para trabalhar no campo, podendo ficar com apenas uma delas em casa. São estes momentos em que fazem aflorar o melhor do humano – Xu Sanguan e Xu Yulan se apoiam, se ajudam e se unem para salvar a vida de Yile, que acaba por ficar doente, após alguns anos da vida impiedosa dos campos. Apesar da dureza da vida das personagens e das misérias humanas expostas em todas as suas dimensões, e talvez por esta razão, “Crônica de um Vendedor de Sangue” é um livro sutil, cuja construção das relações se dá sem lampejos de revolta ou indignação, mas como fruto da necessidade imperiosa de apoiar um ao outro pelo simples prêmio de continuar vivendo. Um pote de arroz se transforma no maior bem que uma família pode almejar e a capacidade de superar as crises pessoais em favor da vida, a maior força que um simples camponês pode arrancar não da terra crestada, mas de suas próprias vísceras.


Esta época retratada por Yu Hua, final dos anos 50, foi o “Grande Salto Adiante” de Mao e cujo legado deixou nada menos do que 30 milhões de mortos na China.
Na atualidade, a China assumiu uma posição chave na economia mundial, através de seu processo de industrialização que barateou a fabricação de bens de consumo enormemente. Confesso que temo que o século XXI também não seja bom para a China, com uma diferença: não é só Iphones e Ipads baratinhos que a China tem exportado. Muitos países parecem encantados com a possibilidade de uma economia capitalista ou como  gostam de chamar de “Capitalismo de Estado”, mas com um regime autoritário comunista, de controle e intervenção na vida privada pelo bem do povo, controle da mídia e da internet, sob a égide de proteger a verdade e a liberdade, câmeras para todos os lados que só servem para fabricar filmes de horror em tempo real e leis de restrição que não diminuem em nada a violência e a degradação da qualidade de vida das pessoas. 


O que as pessoas menos afoitas, menos hipnotizadas pela ganância e pelo consumismo podem observar na China é que sua economia se torna cada vez mais robusta, mas que isto não tem se traduzido em qualidade de vida para a maioria de seu povo – o número de suicídios de jovens no topo de fábricas de alta produtividade revelam isso, assim como as cidades fantasmas construídas anualmente, que tornam o PIB chinês um fenômeno mundial, mas que estão abandonadas ao tempo, por falta de compradores. A classe emergente chinesa abrange um Brasil : quase 300 milhões de pessoas, porém existem mais de um bilhão de pessoas que vivem com muita dificuldade e a liberdade de pensamento e expressão não estão entre os itens produzidos pela pujante economia chinesa.




"CRÔNICA DE UM VENDEDOR DE SANGUE" - YU HUA - COMPANHIA DAS LETRAS -  270 PÁGINAS.


4 comentários:

  1. Ao ler sua postagem e sobre o livro mencionado, sinto uma terrível falta de esperança na humanidade! Pergunto: "De que valeu as religiões até hoje?""Do que valeu o progresso do humano desde seu inicio até os dias atuais?" Tantos morreram em prol de uma crença sobre o "bem e o mal", onde o "bem" seria a grande conquista para que a espécie evoluisse! Me parece que todas as tentativas e oportunidades que se afiguraram diante do homem como a escolha correta para uma sobrevivência saudável, foram abortadas por um egoísmo egocêntrico sem levar em conta a eterna dependência uns dos outros.Creio que estamos caminhando em retrocesso e não em avanço. As lições aprendidas de nada valeram, pois estamos vivendo no olho do furacão onde o lema é: "SALVE-SE QUEM PUDER".
    NT. Seus textos são ricos em informação e muito bem elaborados! Tenho aprendido muito com eles!

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    1. Infelizmente, parece que nossa história (da humanidade) poderia ser toda abrangida por um único título "História da Dominação Humana". Tudo o que produzimos até aqui em termos de estrutura social, familiar, empresarial, religiosa ou política se organiza em algum tipo de díade dominante X dominado. A partir desta díade, se constroem modelos que buscam perpetuar a posição dos membros de um grupo e de outro. Os valores morais por exemplo, são criados para serem cumpridos pelos dominados, não pelos dominantes, que possuem um código moral próprio unicamente baseado na diretiva de se manter na posição de dominante. Não há equidade possível neste tipo de díade e ela é tão perversa que se desdobra sobre todo o conjunto das relações humanas, a ponto de você ser capaz de fazer um mapa de dominância : quais relações em que seu papel é de dominância e quais é de dominado. Isso é horrível.
      PS - Obrigado pelo constante apoio e força aos meus textos !

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    2. Apenas eu tenho que agradecer a essa sua busca constante pelo SABER e pelo desejo de incutir conhecimento aos outros, para que possamos entender melhor a realidade que nos cerca. Se conseguir que "um" apenas se beneficie, enquanto "mil" não se importa, já fêz a sua parte nesse planeta. Continuo perguntando sobre a importância daqueles que se deram ao trabalho de debruçarem sobre livros e escritas,criando a ÉTICA,a RELIGIÃO , a FILOSOFIA ,a PSICOLOGIA e tantos outros termos de conduta. Será que um dia todo esse trabalho terá algum êxito ainda nesse planeta? Talvez seja essa a esperança que move alguns nessa tentativa de tornar o homem digno de sua inteligência.

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    3. Penso que esse trabalho todo não é perdido de forma alguma - ele vem moldando a civilização até aqui. A questão é COMO ele é utilizado : sempre como uma alavanca de poder de uns sobre outros. Veja que todas estas "disciplinas" que você lista, são antes de tudo uma relação do indivíduo pensante com ele mesmo através da reflexão, do pensamento, de sua observação da realidade. Assim, antes da Religião, temos a religiosidade, antes da Filosofia, temos o filosofar, antes da Psicologia, temos a observação de si e do outro, antes da ética, temos a empatia e a reflexão. O problema, ao meu ver, é que na medida em que se transfere estas experiências fenomênicas para um corpo de conhecimento oficial, temos aí um totem ao qual outros que não tiveram a mesma experiência, devem se curvar. Por exemplo : eu sentir a presença de Deus em meu íntimo é religiosidade, eu obedecer aos mandamentos da Igreja ou da Bíblia é Religião. Em minha opinião, estes Totens de conhecimento oficial são necessários para organizar a sociedade e fazê-la caminhar numa certa direção, sem o que talvez fossemos inviáveis enquanto espécie. Conhecer a realidade através da própria inteligência é um dom que todos os humanos possuem, mas, para o bem de todos, poucos utilizam.

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