sábado, 31 de março de 2012

O FÍSICO – NOAH GORDON


“Quando as pessoas adoecem de si mesmas, a empatia e o amor são mais relevantes do que qualquer técnica de cura”



Num momento histórico em que parece que a vocação foi totalmente solapada pela máquina de moer carne do mercado de profissões; em que os pais parecem não inspirar mais os filhos com suas obras, escolhas  e sabedoria; em que o sucesso é medido exclusivamente pela riqueza material, muitas vezes em detrimento à qualidade ou relevância do que se faz para obtê-la; em que o mérito e esforço pessoal podem ser absolutamente ultrapassados ou anulados pela política ou compadrismo perverso; em que fazer rápido é mais desejável do que fazer bem feito; em que o valor da vida humana se relativiza de acordo com seu significado ideológico e não por simplesmente ser uma vida humana como qualquer outra; em que a medicina e a engenharia fundem máquinas, fármacos e técnicas para consertar corpos através de procedimentos precisos, mas que são cada vez mais incapazes de gastar algum tempo para conhecer seus pacientes com um pouco mais de profundidade, através de um interesse genuíno pelo ser que está diante de si; tempos em que o Dr. House (que tem ojeriza ao contato com pacientes) encanta muito mais do que os humanos Dr. Kildare ou Dr. Ben Case, de um passado nem tão distante, jamais sonharam... Enfim, neste momento em que vivemos , penso que livros como “O Físico” de Noah Gordon, além da satisfação lúdica que representam, são um excelente contraponto, um marco de reflexão sobre o que estamos fazendo com nossa civilização. 


Noah Gordon é um contador de histórias, daqueles que tenho valorizado neste espaço desde o início : É daquele tipo que quando descreve um andarilho cozinhando uma carne em banha de porco sobre uma fogueira, sentimos o cheiro, vemos seus fumos se desdobrando no ar , ouvimos a gordura chiar na frigideira e sentimos apetite, vontade de comer algo impensável se fosse descrito sem o brilhantismo de Gordon. Tenho lido seus livros ao longo dos anos e me saciado com sua imensa capacidade descritiva e do humanismo de suas personagens. Embora tenha estudado medicina por um semestre por insistência paterna, tornou-se jornalista e mais tarde escritor. Além de exímio contador de histórias, percebe-se em sua literatura a preferência por temas relacionados à curas, medicina e judaísmo, mas acima de tudo, a cura através do humanismo, da capacidade de entrega de um humano a outro ser.  Das obras que li, O Físico (que faz parte de uma trilogia que conta ainda com “Xamã” e “A Escolha da Dra. Cole”) se destaca francamente pela epopéia humanista de Rob Cole, um jovem inglês, em busca de seu sonho máximo : estudar na melhor escola de medicina do mundo na época (século XI) que se localizava na Pérsia (hoje Iraque) e comandada por ninguém menos que Avicena ( Ibn Sina), um dos maiores polímatas do Islã, versado em múltiplas áreas das ciências e filosofia (estudou e comentou obras greco-romanas, como Platão e Aristóteles), além de ter produzido vários tratados de medicina.  Penso que “O Físico” contém elementos de um grande romance : uma saga pessoal que envolve amor, drama, batalhas, sofrimento, busca e superação, além dos componentes históricos que pontuam a trama, jogando luzes sobre a Idade Média, a “Era de Ouro do Islã”, onde o Oriente era o grande pólo da ciência e da filosofia, enquanto o Ocidente ainda se debatia entre guerras, pestes, invasões e suas consequências – a miséria e a fome.


Rob Cole é um menino inglês, filho de família numerosa e paupérrima, que após a morte dos pais é adotado por um Barbeiro (nome dado aos práticos que percorriam os povoados e cidades da Europa com suas carroças, oferecendo curas, elixires, sangrias e toda sorte de procedimentos “protomedicinais”). Logo se estabelece uma relação de afeto entre os dois e não obstante o Barbeiro ser um verdadeiro “vendedor de óleo de cobra” e um beberrão , consegue transmitir muitos conhecimentos práticos ao menino, fazendo-o descobrir em si mesmo uma capacidade incomum de através do toque, pressentir quando a vida de uma pessoa estava se esvaindo. Rob torna-se apaixonado pela possibilidade de proporcionar cura aos males que afligem os enfermos que buscam no Barbeiro o alívio para seus sofrimentos e percebe que seu toque é um dom que tem algum poder curativo.


Neste ponto o que para alguns pode parecer um dom místico, a mim parece pura e simplesmente uma profunda empatia e a sensibilidade  de perceber e de transmitir conforto ao outro através da capacidade de amar e se entregar a um toque, quando os corpos se tocam, trocam energias e se equilibram.  É notório mesmo para qualquer “médico-engenheiro” , a capacidade de recuperação de um enfermo quando este se encontra amparado psíquica e afetivamente em comparação aos enfermos abandonados em um leito de hospital. Quanto ao “toque curativo”, qualquer pessoa que tenha tido a oportunidade de receber um abraço generoso, receptivo, caloroso e amoroso, sabe o bem estar físico decorrente deste simples gesto. É uma pena que tais abraços sejam tão raros, tão mesquinhamente economizados, tão reprimidos, tão negados como se um corpo só pudesse se entregar a outro se for por motivações sensuais. É uma pena que seja necessário pagar para que um desconhecido toque nossos corpos em clínicas de diversas especialidades, quando estes mesmos corpos se cruzam o tempo todo evitando se tocarem.


Não se trata da crença ( em minha opinião, ingênua) de que passes corporais, impostação de mãos e conversas curem doenças graves, tumores e má formações, mas de entender que qualquer procedimento médico representa apenas 50 % da possível cura, pois somente a resposta do organismo tratado é que poderá completar este processo e para tanto o SER que representa este organismo precisa mais do que técnica para querer se curar.


O nascimento da própria Psicanálise se deu   através da observação de médicos sensíveis o suficiente para perceberem que seus pacientes demandavam mais do que uma receita ou um exame clínico : precisavam ser ouvidos, precisavam se sentir acolhidos e muitas vezes a consulta era curativa por si mesma, sem a necessidade de outros procedimentos.


Voltando à história de Noah Gordon , Rob, após inúmeras aventuras pela Europa Medieval acompanhando o Barbeiro, fica sabendo da existência da Escola de Medicina de Avicena localizada na Pérsia e que só franqueava seu acesso a judeus. Seu desejo de aprender com o maior mestre da medicina da época e de poder curar as pessoas o faz sonhar com a possibilidade de cursar a escola, apesar dos evidentes e aparentemente intransponíveis empecilhos : ele era Inglês, cristão, pobre e vivendo a milhares de quilômetros de distância de seu sonho. Rob empreende então uma fabulosa aventura na busca deste sonho, na qual sua determinação irá ser testada muito além dos limites. Sua viagem rumo à Pérsia é marcada por todo o tipo de percalço, obrigando-o a se desdobrar para continuar vivo e firme em seu objetivo, ao mesmo tempo que conhece o amor, o acolhimento e a bondade daqueles com quem é obrigado a cruzar pelo caminho. Durante seu imponderável e longo percurso, assumiu uma identidade falsa como se fosse um aluno judeu e aprendeu todas as peculiaridades do Judaísmo, seus rituais, símbolos e significados para estar apto a ser admitido na escola, quando lá chegasse.


Aqui, Noah Gordon desfralda as velas de seu poder descritivo e nos leva a uma viagem fascinante por entre os costumes do povo judeu e do Oriente antigo e constrói uma personagem cujo amor e disponibilidade de ajudar o outro só é equiparado com sua força de superação na busca de um sonho praticamente impossível à maioria dos mortais.  Rob Cole não partiu para enfrentar o mundo desconhecido e hostil em busca de fortuna ou de fama, mas para buscar o conhecimento que lhe faltava para ser um bom “Physician”, ou seja, um bom médico. Não obstante tivesse “um dom”, sabia em seu íntimo que este só poderia ser realmente útil se associado ao conhecimento cujo acesso lhe cobraria um árduo preço.
Gordon costura bem a história e nos dá um final bastante satisfatório, sem estardalhaços, sem grandes apoteoses, coerente com o humanismo de sua personagem principal.  



"O FÍSICO" - NOAH GORDON - EDITORA ROCCO - 592 PÁGINAS



5 comentários:

  1. Foi um dos mais inspiradores romances que li. Sou fã de carteirinha desse autor tão humano e sensível que me levou a buscar outros trabalhos dele, igualmente maravilhosos.Quando lemos suas obras e olhamos para o tempo atual, podemos sentir que "algo" foi perdido ao longo do caminho da humanidade.Assim como as maquinetas que marcam os preços das coisas numa velocidade espantosa, as pessoas caminham para suas demandas sem nem mesmo se perguntarem "porque" e "para quê". "Perder tempo em observar o tempo,é perder tempo."O que importa é ir sem saber para o quê ou para onde".Pessoas como esse autor que se debruça sobre a sensibilidade, a empatia e ao afeto, se imprime em suas estórias e se oferece aos leitores.

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    1. Veja que se pelo menos a leitura fosse mais incentivada, teríamos um auxílio enorme deste tipo de autor para educação das novas gerações cujos pais são tão ocupados de si mesmos e acabam delegando para a escola um trabalho que deve começar em casa, desde muito cedo. É mesmo uma pena...

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  2. Quero dizer da minha admiração por sua capacidade de escôlha e da sua sensibilidade em escrever sobre obras de maior importância. Muitas vezes penso que seria um grande escritor se exercesse esse trabalho.
    Espero que um dia você assuma essa tendência que esta aí,é só pegar!

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  3. Este livro [sublime, por sinal] já foi adaptado para um filme [brilhante, também]; vejam:

    http://www.adorocinema.com/filmes/filme-207809/criticas-adorocinema/

    Disponham ...

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