quinta-feira, 19 de abril de 2012

QUANDO NIETZSCHE CHOROU - IRVIN D. YALOM

"O HOMEM É UMA CORDA ESTICADA ENTRE O ANIMAL E O SUPER-HOMEM, UMA CORDA ESTICADA POR CIMA DO ABISMO" -  FRIEDRICH NIETZSCHE



Diz-se que um verdadeiro filósofo é aquele capaz de refletir com toda a honestidade que lhe é possível, acerca de seu próprio fenômeno ou seja, sua vida e suas experiências pessoais, sendo que tudo o mais não passa de História da Filosofia ou de História do Pensamento Humano. Ao filósofo cabe refletir sobre a verdade,  sabendo ser impossível encontrá-la fora de si mesmo, daí seu percurso quase solipsista numa empreitada cujo o resultado é o próprio percurso e não o ponto de chegada. A famosa frase de Sócrates – “Uma vida que não é refletida, não vale a pena ser vivida” – nos dá uma idéia de que, segundo o ateniense, o homem que merece viver ou que possui uma vida digna é necessariamente um filósofo. Equivale dizer que não obstante a vastidão das correntes filosóficas e das obras decorrentes delas, não é possível ser um filósofo apenas estudando o que outros homens pensaram, por mais brilhantes que sejam suas considerações e por mais que a alta cultura e o academicismo, formados pelos intelectuais de um determinado momento histórico, os prestigie.



É exatamente neste contexto que situo a trama do excelente livro de Irvin Yalon, que fez muito sucesso e chegou a render um ótimo filme com Armand Assante no “papel da sua vida”, em minha opinião, como Friedrich Nietzsche.
Yalon, que além de escritor é psiquiatra e psicanalista, se vale das infinitas possibilidades da criação literária para juntar num único cenário, pessoas que jamais se encontraram de fato e situações que não aconteceram, mas que poderiam muito bem ter acontecido, caso estas personagens tivessem seus caminhos cruzados pelo destino. Sua tessitura entre realidade e ficção é perfeita tornando toda a trama que envolve personagens altamente complexos, extremamente verossímil.


Nos final do século XIX, Josef Breuer, um médico austríaco de quem Sigmund Freud foi discípulo, goza de imenso prestígio decorrente do sucesso de seu novo método de tratamento baseado na “cura pela fala” ou “terapia através da conversa”, aplicado em uma paciente de nome Bertha Pappenhein (codinome - Ana O.) . Esta paciente já havia sido tratada originariamente por Charcot e foi o primeiro diagnóstico de histeria, basilar na teoria psicanalítica que seria desenvolvida posteriormente. Já avançado nos quarenta anos, Breuer sente-se realizado por suas conquistas enquanto médico, cientista, chefe de família e figura ilustre do cenário cultural austríaco, embora sinta-se incomodado pelas freqüentes fantasias sexuais que desenvolve em relação à sua bela paciente.


Por outro lado, temos Friedrich Nietzsche, um filólogo que se tornou um dos filósofos mais contundentes de todos os tempos, referindo-se a si mesmo como o “filósofo do martelo”, posto a crueza e violência de seu filosofar. Com um temperamento e orgulho superados apenas por sua genialidade, agravado por uma saúde débil decorrente de uma sífilis contraída ainda na juventude, Nietzsche encontra-se a beira de um colapso, sofrendo de enxaquecas excruciantes e isolando-se cada vez mais em sua solidão auto imposta.


Lou Salomé, uma jovem russa que além de rica e encantadora, circulava pelas mais altas esferas intelectuais da Europa, é a ponte que Yalon constrói para reunir Josef Breuer e Nietzsche, na tentativa de que o médico austríaco se utilizasse de seus métodos para ajudar Nietzsche.
O primeiro contato entre ambos não corre bem e Breuer não encontra possibilidade de seguir com seu tratamento diante da muralha empedernida da personalidade de Nietzsche. A trama se desenrola deliciosamente na aura vienense do final do século, sua cultura, seus cafés e a alta intelectualidade, nos contatos freqüentes de Breuer e seu então discípulo Freud, a sedução de Lou Salomé tanto em relação a Nietzsche quanto a Breuer, até que uma crise mais forte faz com que o filósofo aceite a ajuda de Breuer. Estabelece-se assim um pacto entre ambos, onde Breuer tentará livrar Nietzsche de sua enxaqueca e este irá analisar Breuer, através de sua “marreta filosófica”. O que decorre daí é, em minha opinião, um desenrolar brilhante que além de absolutamente verossímil, nos faz refletir sobre vários ângulos para além da psicanálise e da própria filosofia.
Os papéis de médico e paciente se confundem e quem se beneficia da verdadeira terapia pela conversa é Breuer, pois Nietzsche o faz ver que toda sua vida foi construída sobre alicerces ditados pelo seu entorno : sua careira, seu belo casamento com Mathilde,  sua posição e prestígio não lhe davam sequer a paz de espírito que era facilmente roubada pelos seus desejos inconfessos por Bertha. Nada em sua vida fora escolhido por ele próprio.



Em contrapartida, podemos perceber que Breuer só faz bem a Nietzsche enquanto um amigo, uma companhia inteligente que ao espelhar sua própria filosofia, faz com que Nietzsche afunde mais ainda dentro de seu abismo : NIETZSCHE JÁ VIVIA O MAIS PRÓXIMO POSSÍVEL DO IRRESGATÁVEL FENÔMENO DE SUA VIDA !



É neste ponto que retomo o filósofo socrático. Nietzsche provoca ainda nos dias de hoje, uma forte perturbação em quem se aproxima de sua filosofia. Há quem diga que sua filosofia é negativista, que carece de uma espinha dorsal consistente e que tudo o que ele fez foi cunhar uma série de aforismos e de textos que desconstroem a alma humana, mata Deus e seu super homem já foi considerado o modelo no qual os nazistas erigiram sua saga de terror. Por outro lado, Breuer foi praticamente o criador do método que iria fundamentar a psicanálise e, nas mãos de Freud, impactar toda a cultura do século XX. Tanto Breuer quanto Freud, apesar do brilhantismo de suas mentes e de suas carreiras, foram reféns daquilo que construíram – o que na ficção de Yalon, Nietzsche apontou para Breuer, caberia muito bem a Freud nos anos seguintes. Freud continuou por toda sua vida como guardião daquilo que o alçou a sua condição inexpugnável de pai da psicanálise, mesmo reconhecendo mais tardiamente suas limitações.  A meu ver, esta é uma diferença que deve ser refletida : Nietzsche pagou caríssimo sua busca pela verdade – sua vida foi pouco melhor do que miserável, solitária, cheia de sofrimentos físicos e psíquicos que culminou com a perda de sua sanidade.   A mim parece que Nietzsche não buscava a cura do humano pois, ao contrário, como humano vivenciou na pele, que a condição humana não é passível de cura, mas de aceitação e adaptação (que é o que a psicanálise buscaria ao fim e ao cabo). A adaptação nunca foi uma opção para ele. Isto não faz da filosofia de Nietzsche uma verdade, mas a meu ver faz de Nietzsche um filósofo de verdade. 
E para além da aprovação do velho Sócrates qual é a vantagem de ser um filósofo ? Confesso que não tenho a resposta a esta pergunta, porque talvez a pergunta seja em si descabida - não se trata de uma opção ! 


Tanto o livro quanto o filme merecem a visita de quem se interessa minimamente pelo assunto, pois ambos são muito bem feitos, sendo o roteiro do filme muito bem adaptado.






















"QUANDO NIETZSCHE CHOROU" - IRVIN YALON - 407 PÁGINAS - EDIOURO
EXISTE AINDA UMA VERSÃO EM AUDIOLIVRO, NARRADA PELO JOSÉ WILKER.





10 comentários:

  1. Deu muita vontade de ler de novo!!!!
    Achei fantástico como a história é pesada, mas como o livro é leve e devorável... Tinha que estar aqui sem sombra de duvida! E "a cura de schopenhauer"? Vai ter espaço aqui tbem??? :)

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    1. Estou pensando nele... o problema da "cura" é que são duas histórias que correm em paralelo e, na minha opinião, uma delas é absurdamente superior à outra. Mas vou pensar em como fazer... :)

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  2. Creio que Nietzsche foi uma das pessoas mais sinceras consigo mesmo que já conheci através de suas obras e das obras de outros autores. Talvez que a intangibilidade de sua doença o colocou com todos os direitos de dizer a verdade e aceitá-la mesmo contra sí mesmo. Na nossa cultura, a "verdade" dói como uma ferida exposta, que a pessoas tentam encobrir a todo custo. Ele não, vivia com sua ferida aberta para quem quisesse ver, sem o receio de não ser aceito, porque ele próprio não se aceitava o suficiente para acumular mais rejeições. Wilhelm Reich criou sua teoria psicanalitica, através dessas verdades que sempre admirou em Nietzsche, diferente de Freud que respeitava muito os valores externos. Ao fim e ao cabo,o maior ressentimento que guardamos a sete chaves em nosso interior,é por nós mesmos que, em algum ponto de nossas vidas, recuamos e não apostamos em nós mesmos em função do julgamento externo à nossa volta. Esse simples detalhe, o de não nos aceitar e projetar o rancor sobre o meio, foi mostrado de forma genial no filme "O Dia que Nietzshe chorou". Gostei muito do seu primoroso texto.

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    1. Perfeito ! Neste sentido, devemos reconhecer o papel fundamental das psicologias, sobretudo a psicanálise, como métodos que podem não apenas desvelar o fundo da alma das pessoas, mas ajudá-las a permanecerem vivas com seja lá o que encontrarem. E convenhamos : Há um momento certo de parar ! Até Sidartha parou quando, segundo o mito, ouviu um músico comentar a seu discípulo acerca de seu instrumento de corda : "Se você esticar muito a corda, ela se arrebentará, porém se deixá-la frouxa demais, não tocará". A corda de Nietzsche rompeu-se naquele famoso episódio em Turim, quando ao ver um cavalo empacado sendo açoitado pelo seu dono, correu em direção a eles e abraçando-se em prantos ao pescoço do animal, nada mais pode dizer até o final de seus dias, que não tardaram. Outro ponto é que se formos fundo demais, fica difícil aceitar o que encontramos e continuar simplesmente a tocar a vida.

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  3. Em tempo, o nome do filme é "Quando Nietzsche chorou".
    Ainda quero acrescentar sobre a "verdade"algo que julgo muito importante: "Existem duas verdades.A de dentro, que chamo de "feto".A verdade feto é aquela que ele defendia e que não era aceita porque ía contra a outra, a verdade apaziguadora. Ésta é que acalma os circundantes e portanto pode ser vista, enquanto que a outra, a feto,cresce dentro de nós se transformando em nosso algóz "adium eternum" sem nunca nascer.

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    1. Humm... Penso que isto a que você chama "verdades" ficaria melhor com o rótulo de "conteúdos". Assim, temos os conteúdos internos, superficiais e profundos, e os externos, de fachada e necessários para que a sociedade funcione. A aceitação e adaptação, vem justamente em socorro de conteúdos que possam ser compartilhados pelo conjunto da humanidade (aquilo que você chama de verdades apaziguadoras)e ao mesmo tempo conciliar (nem sempre de forma eficaz) os conteúdos internos de cada um (a verdade feto). Já imaginou se todos nós tentássemos conviver através de nossos conteúdos internos ? Penso que nosso drama existencial maior é encontrar este ponto de equilíbrio.

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  4. Uma questão que me chamou atenção nesse livro foi a capacidade do autor em conseguir humanizar a imagem de Nietzsche, sem com isso transformá-lo em uma figura menos intrigante e inquietante. Conseguiu trazer Nietzsche para a dimensão daqueles que habitaram sim esse planeta, criando no leitor quase que uma simpatia por esse filósofo, estereotipado por ele próprio, como o porta-voz do lado negro da força. Mais interessante ainda, conseguiu essa visão sem deturpar em nada sua linha de pensamento e sua corrente filosófica, todos os ingredientes tipicamente nietzschenianos estão lá, todos os ataques às normas e aos valores comuns, todas as marteladas nos dedos e nas almas. E, mesmo assim, duvido que haja alguém que tenha lido esse livro (de forma desprovida de preconceitos) que não tenha ao menos pensado em comprar Assim Falava Zaratustra... Nem que fosse para ler somente após terminar o último livro do Harry Potter...

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    1. Exatamente ! Esta é uma das possibilidades fantásticas da literatura : A reunião fictícia das personagens deste livro possibilitou uma atuação de Nietzsche diretamente num cenário muito mais próximo aos humanos de forma a ele poder praticar sua filosofia num contexto que revela o lado positivo e prático de sua marreta : a libertação de Breuer e os questionamentos da vida comum (não solipsista como a dele)que se tornam absolutamente compreensíveis. A meu ver, além de um ótimo romance de entretenimento, Yalom consegue demonstrar a proposta pedagógica dos meus sonhos ! E ele consegue repetir a dose, com outra fórmula em " A Cura de Schopenhauer".

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    2. Depois de postagens tão adequadas e muito esclarecedoras quero reverenciar a atuação de Armand Assante como Nietzsche, que nos deu com sua interpretação perfeita, uma visão mais clara sobre esse homem enigmático que consegue mexer com os brios alheios.

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    3. Também acho...sempre gostei desse ator, mas como eu disse, para mim foi o papel de sua vida !

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