terça-feira, 24 de janeiro de 2012

FAHRENHEIT 451 – DERRETENDO CÉREBROS


“Há mais de um jeito de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas por aí com caixas de fósforos.” – Ray Bradbury






A primeira vez que tive contato com a obra de Ray Bradbury foi em filme, lá pelo idos dos anos 70, e fiquei muito impressionado. Na época eu não tinha muita noção da amplitude do argumento, mas três pontos me chamaram a atenção no filme : 1) 451 fahrenheit é a temperatura em que o papel entra em combustão (o cérebro derrete bem antes); 2) Os bombeiros do filme não combatiam incêndios, mas ateavam fogo às casas e aos livros que elas continham e 3) Existia um grupo de pessoas que se escondia na floresta e que decoravam livros, tornando-se “livros humanos”, de tal forma a prescindirem dos livros impressos que eram proibidos. Ao mesmo tempo que a trama era assustadora, sentia que os “livros humanos” eram uma idéia ao mesmo tempo simples e brilhante. Simples porque antes da existência do livro, a transmissão do conhecimento era praticamente toda oral, e brilhante porque na impossibilidade da guarda de livros físicos, as pessoas se colocavam novamente na posição de transmissores do conhecimento e das idéias de humanos para humanos. A grande diferença é que neste caso, a transmissão era literal, decorada de uma obra já escrita, sem a possibilidade de acréscimos do detentor da memória à obra do autor original – na obra de Bradbury, as crianças eram treinadas desde cedo para serem “Romeu e Julieta”, “O Retrato de Dorian Gray”, etc, para substituírem com precisão aqueles que estavam velhos e próximos da morte. Esses “livros humanos” eram rebeldes de uma sociedade futura distópica e totalitária, na qual as casas eram providas de enormes de aparelhos de televisão com programas “oficiais” e os livros de qualquer natureza completamente proibidos, sendo a sua simples posse considerada crime.  A esperança destes rebeldes, aos quais o protagonista Guy Montag (um bombeiro arrependido) resolve se juntar, era de que num futuro melhor, os livros pudessem ser reescritos através das memórias dos “livros humanos”. Anos depois de ver este filme, tive acesso ao livro e pude verificar que o trabalho de Truffaut na adaptação para o cinema havia dado conta de acionar meu imaginário e minha reflexão,  tornando a obra escrita quase supérflua neste quesito, o que me fez pensar em duas coisas, que julgo importantes : 

1) Não obstante a leitura seja um enorme prazer e o contato com o livro físico seja uma experiência multi-sensorial, é absolutamente  impossível ao longo de uma vida humana, ainda que totalmente dedicada à leitura, sequer “arranhar” a superfície do conjunto de obras existentes no mundo e que se multiplica exponencialmente.

2) Existem múltiplas maneiras de “ler” e a mídia impressa não pode ser a única opção para quem quer ter contato com vastidão das idéias humanas, sob pena de limitar brutalmente tal experiência.

Interessante que quando tive estas reflexões, ainda estava muito distante das possibilidades midiáticas atuais. Não obstante o amor pelos meus livros físicos, aprendi a ampliar meu espectro de possibilidades : já adolescente, adorava sentar com meu avô paterno para ouvir suas histórias e hoje me dou conta de que ele era uma espécie de livro humano – todos nós somos ! Esta reflexão me leva a outra que o “ouvir o outro atentamente” é uma espécie de leitura tão ou mais rica do que a leitura de um livro. Obviamente que existem enredos melhores e piores, como nos livros aliás. Talvez a nossa maior crise atual seja de audição e talvez a leitura de livros seja, antes de tudo, um excelente treinamento para a audição.

De volta à obra de Bradbury, soube que as tentativas de fazer um remake do filme de Truffaut tem esbarrado numa série de dificuldades, sendo a primeira que um filme sobre queima de livros em épocas de livro eletrônico e computadores, talvez fosse anacrônico. Depois o projeto foi sendo arrastado desde 1994 e por razões diversas ainda não foi concretizado.  Penso que a trama de Fahrenheit 451 continua extremamente atual, pois como disse no começo, o argumento é muito mais amplo do que pura e simplesmente a queima de livros – que aliás tem sido uma constante na história da humanidade (voltarei a este tema em futuros posts).  Bradbury aponta para a polifonia midiática sempre ligada aos interesses do Estado que na impossibilidade de queimar todos os livros, se empenham em derreter cérebros até que eles sejam capazes de repetir qualquer bobagem (qualquer mesmo!) que lhes sejam incutidas.









Curiosidade : Houve uma época em que me encantei tanto com a idéia dos “livros humanos”, que idealizei um "Bar Fahrenheit 451", onde os atendentes seriam preferencialmente estudantes do curso de Letras e treinados em sinopses de grandes obras. Eles estariam vestidos com uma roupa preta semelhante à utilizada por Montag e poderiam ser convidados às mesas para contar histórias. A cada noite, a “humanoteca”  mudaria seus títulos disponibilizados junto com o cardápio, que poderia estar correlacionado ao contexto da obra ou do autor. Ainda bem que acordei de meu delírio, pois tenho sérias dúvidas da viabilidade econômica de um projeto destes.

Para quem ainda não teve oportunidade e quiser conferir, recomendo ler o livro - "Fahrenheit 451"  - Editora Globo - 2003 - 209 págs. e assistir ao filme. Contudo, a meu ver o filme dá conta. Para quem é aficionado em HQ, também existe uma versão autorizada pelo autor.










3 comentários:

  1. Sei do valor da leitura, tanto que consegui escrever três livros, o que não teria sido possível sem ler fartamente em anos anteriores.
    Embora escrever seja um dom que herdei do meu pai,ler é outro dom anterior ao escrever.Você escreve muito bem, mas precisa ter mais confiança em valorizar o que escreve, pois acredito que seria UM GRANDE ESCRITOR!

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  2. Penso que de todas as formas de arte, a escrita talvez seja a mais caprichosa e exigente. Não se trata apenas de talento, mas de férrea determinação e disciplina para levar um projeto adiante, de fio a pavio. É necessário ainda negociar com a autocrítica de maneira que ela atue na sua produção, sem impedi-la por excesso de zelo ou perfeccionismo. Você sabe do que estou falando, pois precisou exercitar tudo isso ao escrever seus livros. Talvez um dia eu consiga.

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  3. Creio que enquanto ficarmos buscando a "perfeição para fugir à critica", precisamos trabalhar com nossa mente no sentido de permiti-la se expressar grosseiramente para estravazar as emoções, pois elas são livres, não conhecem a gramática. Depois da obra pronta, cuidaremos das correções, como substituições de frases dificieis para alguns entender, de forma que a leitura dessa obra se torna um rio sem pedras, onde as pessoas precisem de dicionários para saber o significado das palavras. O segredo é só esse, pois cultura refinada para isso, você meu amigo, tem der sobra. Vá enfrente!!!!!

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