quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ – A FRAUDE DAS URNAS

"Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário" – José Saramago


Ateu, cético, pessimista, e sobretudo polêmico, amado e odiado por muitos, Saramago instituiu uma nova maneira de escrever, com seu texto cursivo, caudaloso, parágrafos imensos que pedem mais vírgulas e quase clamam por um ponto final. Para mim não foi fácil lê-lo pela primeira vez, mas depois que a gente pega o  jeito, não consegue parar. São muitas as suas obras de ótima qualidade que o tornaram famoso no mundo inteiro e acabou por render-lhe um prêmio Nobel de Literatura em 1998, e aqui no Brasil ele ficou mais popularmente conhecido, pelo “Ensaio sobre a Cegueira”, pois este livro ganhou uma versão cinematográfica homônima que teve algumas cenas rodadas  na cidade de São Paulo. Alguns anos antes disso, seu “O Evangelho segundo Jesus Cristo” ganhou uma excelente montagem teatral que teve bastante sucesso por aqui, embora tenha alimentado ainda mais a ira da Igreja Católica contra o autor.  Aliás já ouvi tantos impropérios acerca de sua figura, e não podemos dizer que é sem motivo : Ele teve a desfaçatez de chamar a Bíblia de um “Manual de Maus Costumes”  e se autodescrevia como “Comunista Libertário” ! Ele também não conheceu fãs entre os judeus ou em qualquer outra religião.
Não concordo com todas as suas idéias ou vocações políticas, mas reconheço a honestidade de seu pensamento (às vezes ingênuo) e seu gênio literário (contestado por reacionários e pseudo-intelectuais)

Lembrei-me imediatamente dele, quando li recentemente um artigo no jornal que dava conta de que na atual pré-disputa pela prefeitura da cidade de São Paulo, não havia uma única proposta ou preocupação manifesta pelos problemas da cidade, as causas de sua deterioração ou por soluções, ainda que parciais, para os cidadãos que têm suas vidas pioradas pelo dia-a-dia de transporte ruim, trânsito caótico, lixo nas ruas, enchentes que matam e destroem dentro das próprias casas, atendimento de saúde precário, falta se segurança, má iluminação, buracos por todos os lados, isto para citar apenas o que é mais visível. O artigo citava que as grandes preocupações dos candidatos são as articulações políticas e os níveis de rejeição para as campanhas de maior peso, como a presidencial. Para tanto, oposição se junta com situação, inimigos “mortais” de ontem se unem em fotos e falas, como se os eleitores fossem absolutos imbecis que devem guardar apenas a última imagem, que a que interessa no momento. Aquilo que os partidos chamam de “aliança política”, apenas dá uma idéia do quanto valem suas palavras e propostas: nada. Nada na política atual é crível e o voto transformou-se numa fraude, num cheque em branco que a população assina, dando plenos poderes por quatro longos anos, para que o político faça o que bem entender, sem jamais poder ser cobrado ou instado a pelo menos cumprir suas promessas de campanha. O voto transformou-se numa espécie de “amansa corno” para a população, pois sempre que há algum princípio de insurreição, ainda que apenas de protesto, a velha Democracia é tirada do baú, através de sua pseudo-representante máxima : a eleição. Este é um fenômeno mundial, basta analisar a baixa presença às urnas nos países em que o voto é livre. Aqui, a democracia já começa a capengar pela obrigatoriedade do voto mas, apesar dos problemas, o cidadão comum acaba por ficar contente por viver num país onde a democracia de fachada tremula na ponta do mastro do Tribunal Eleitoral.


Não temos equipamentos médicos suficientes para tratar a população, mas temos urnas eletrônicas de última geração; não temos escolas públicas de qualidade, algumas não tem sequer teto, mas todas elas tem computador; não temos professores bem formados ou pagos para viverem com o mínimo de dignidade, mas temos o congresso e o parlamento mais caros do mundo; o transporte público funciona pessimamente no país inteiro, mas a Receita Federal é uma das mais modernas do planeta. O Brasil vive em função dos políticos e suas benesses, seus cargos garantidos pelo voto popular. Não está indo bem ? Sem problemas, tentem na próxima daqui a quatro anos! Estamos há muito tempo vivendo a crise da Democracia de Representação, pois os políticos e partidos não representam nada mais do que seus interesses privados e econômicos. Estamos emparedados por um sistema político cuja única opção é procrastinar por mais quatro anos, na expectativa de que um programa televisivo ou o futebol revele um “bom candidato”. Popularidade é igual a “votabilidade”. 


Saramago foi capaz de imaginar e contar histórias sobre situações inusitadas, como no caso em que uma espécie de cegueira “branca” tomou conta de todos os habitantes de uma cidade, como uma epidemia e as conseqüências da desestruturação social decorrente (Ensaio sobre a Cegueira) ou do homem que descobre que existe um outro igual a ele através de um filme que alugou aleatoriamente (O Homem Duplicado), ou de um país em que as pessoas repentinamente param de morrer (Intermitências da Morte), mas o romance que mais me chamou a atenção foi Ensaio sobre a Lucidez. Penso que chamou minha atenção, porque a idéia não é uma simples alegoria : é danada de boa ! – Pelo menos para marcar a insatisfação popular com o sistema político vigente, que se autoprotege e se legitima através do voto pseudo-democrático.



Num país imaginário, onde impera a democracia representativa pelo voto, as autoridades se vêem diante de um fato inusitado em pleno dia de eleições : ninguém compareceu às urnas para realização do escrutínio. Após certo alvoroço, resolvem adiar o dia de votação e no novo evento, para alívio das autoridades constituídas, a presença é maciça. Contudo, nova surpresa estava reservada : Quase 80 % dos votos eram em branco.  A partir daí, as estruturas de poder começam a ficar preocupadas e a se reunir freneticamente para encontrar uma solução para o impasse, posto que os finais de mandato estavam próximos e ninguém poderia ser empossado com aquele percentual de votos nulos. Novas eleições são marcadas e o fenômeno se repete com intensidade ainda maior : mais de 80 % dos votos são brancos.
O que se segue é uma crise institucional sem precedentes, em que os governantes tentam pressionar a população de todas as formas, deixando de fornecer serviços básicos de transporte, limpeza e segurança, mas para o espanto de todos (aí aparecem as tendências anarquistas de Saramago), o povo começa a se ajudar e realizar por conta própria aquilo que antes dependiam da administração pública : começam a limpar as próprias calçadas, a organizar caronas entre os populares, revezarem-se na vigilância. Os antigos administradores, desesperados planejam se retirar do país na calada da noite, quando todos estivessem dormindo, para decretarem Estado de Sítio e fecharem as fronteiras impedindo que os insurretos recebessem qualquer ajuda externa, na tentativa de sufocar o movimento.


Os desdobramentos da história são cômicos, porém trágicos (como manda o pessimismo de Saramago), mostrando que a sede de poder dos humanos, uma vez desbancada de seu trono, adapta-se rapidamente e utiliza-se de qualquer ardil para retomar a relação de dominância. Assim acontece com a política, com a corrupção, com as lutas entre facções criminosas ou disputas empresariais.


Este é um romance que vale a pena ser lido, mesmo por aqueles que não apreciam Saramago e sua vasta obra, pois trata de um assunto que é um verdadeiro tabu nos dias correntes : a validade do voto e a possibilidade de mudança através de um sistema viciado e de cartas sempre marcadas. 
     




ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ - JOSÉ SARAMAGO - COMPANHIA DAS LETRAS - 325 PÁGINAS

7 comentários:

  1. "as grandes preocupações dos candidatos são as articulações... Para tanto, oposição se junta com situação, inimigos “mortais” de ontem se unem em fotos e falas, como se os eleitores fossem absolutos imbecis...
    ...e o voto transformou-se numa fraude, num cheque em branco que a população assina, dando plenos poderes por quatro longos anos"

    Triste realidade :(

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    1. Pois é... se Sócrates já criticava a democracia ateniense naquela época, por julgar que a massa ignara não poderia governar com sabedoria e equilíbrio, imagine o que pensaria desta !

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  2. Creio que a única forma de reverter esse cabaré desqualificado que é o meio político, é sofrermos a dor da falta de liberdade.Enquanto o povo não passar por essa provação, não irá aprender a "ser" de verdade. Enquanto esse mesmo povo não passar por privações severas,não irá aprender a separar o jôio do trigo.
    Todas as mudanças radicais só acontecem depois de muito sofrimento. Veja o que esta acontecendo no mundo com patifes sendo arrancados do poder à força.Isso ainda chegará até aqui quando a viga mestra colocada no lugar exato de sustentação dessa patifaria, chamada "bolsas disso e daquilo" ruir como um castelo de cartas. É esperar para ver.

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    1. O problema é que toda revolução deste tipo culmina com uma nova liderança que ao longo do tempo se transforma na mesma corte que ajudou a derrubar. Isto tem sido histórico nas revoluções e talvez os humanos não consigam um tipo de organização mais inteligente, porque a luta pela dominação do outro está intrínseca em seu DNA e onde há dominação, há assimetria, luta pelo poder, sociedade de classes, corrupção e o pior do humano.

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    2. Isto enquanto a àgua não bater nas nádegas dos desejosos de poder.
      Ouvi que a Coréia esta tentando trocar arma nuclear por comida, pois ao fim e ao cabo, sem comida nenhum poder se sustenta.

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  3. Estou lendo esse livro há 3 anos...Explico: quando comecei a estudar larguei ele de lado, já passado da metade, porque tinha outras demandas mais urgentes,mas seu conteúdo é tão intenso, que está muito vivo em minha memória e tenho certeza que não terei problemas de retomá-lo, apesar de achar a leitura difícil por causa das diferenças no idioma. É, a ideia é danada de boa mesmo, tão boa que eu a pratico, mas sou uma reles gota em um imenso oceano. A ideia seria danada de boa se o ser humano fosse outro. Sacanear o outro em seu próprio benefício faz mesmo parte do DNA, por isso o "povo" atura. Seria "tipo assim, se eu estivesse lá faria o mesmo".

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  4. Bem... já somos então duas gotas !!(e cá pra nós, conheço mais um punhado delas !)
    Sabia que a expectativa de abstenção de votos para as próximas eleições para presidente na França (onde o voto não é obrigatório)é de quase 40 % ? Lá também começou com gotas...
    Penso que deve insistir com a leitura de Saramago, porque acho que você, em especial, vai gostar muito dele! Custa um pouco a se pegar o jeito, mas depois vai que vai. Saramago era bocudo, não tinha papas na língua e adorava uma encrenca... Acho que você vai gostar do "Evangelho Segundo Jesus Cristo" - é imperdível.

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