quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

2666 – A ARTE DE ESCREVER UM ROMANCE INFINITO


"Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio" - Charles Baudelaire




Em 2010 tive o prazer de ler excelentes livros, mas o que marcou mais profundamente pela experiência de leitura que me proporcionou, foi o mega romance 2666 de Roberto Bolaño. O livro chama a atenção pelo título obscuro e pelo volume – é daqueles livros que param de pé sozinhos. Contudo, quando se começa a lê-lo, sua grossura e peso desaparecem por encanto e o que resta é a mais saborosa viagem pela mente inesgotável deste autor, que infelizmente, nos deixou tão cedo. Embora seja um tour de force pela imaginação criativa de Bolaño, a sensação que tive é de que ele poderia continuar escrevendo este romance indefinidamente, anexando mais e mais histórias, sem jamais perder o encaixe entre elas ou desandar sua prosa redonda em “alta definição”.



As cinco histórias que se desenrolam, tocam-se de forma mais ou menos sutil (a 1ª, 4ª e 5ª mais do que a 2ª e a 3ª ), mas a riqueza de cada uma delas, deixa a necessidade de “costura” bastante reduzida. Cada uma delas é uma pequena obra prima e terminam sem terminar e mesmo assim, parece que nada deixou de ser dito, ainda que muito mais pudesse ser dito ( aquela sensação de que Bolaño poderia continuar, continuar e continuar...) . Este foi o primeiro livro que li de Bolaño, seu último escrito, e tive a sorte deste ser considerado pela crítica especializada como sua obra prima. Ligo muito pouco para a chamada “crítica especializada”, e diga-se de passagem, o próprio livro acaba por ser uma espécie de crítica aos críticos especializados mas, neste caso, nossas opiniões são absolutamente coincidentes, pois li os outros livros do autor, que são ótimos, mas nada se compara a 2666.




O título enigmático só pode ser desvendado a partir das notas da primeira edição em português (não conheço as demais) que remete ao seu romance anterior “O Amuleto”, que dá a pista de que o número 2666 refere-se a uma data, um ano para ser mais exato – na verdade Bolaño na pele da personagem Auxilio Lacouture, descreve um lugar da trama como se parecesse um cemitério de 2666 – “um cemitério escondido debaixo de uma pálpebra morta ou ainda não nascida, as aquosidades desapaixonadas de um olho, que, por querer esquecer algo, acabou esquecendo tudo”.



2666 é um livro cru, rico mas cru, sem enfeites, sem tergiversações desnecessárias – o que é um prodígio numa obra tão extensa. Bolaño começa por retratar o modus-vivendi de quatro intelectuais europeus obcecados na obra de um escritor de nome Beno Von Arcimboldi, que desapareceu pelo mundo sem deixar vestígios. A busca que estas personagens vazias empreendem pelo escritor é renhida, obsessiva, quase canibal e é descrita por Bolaño com a mesma naturalidade com que descreve  a mediocridade ressentida de um repórter negro norte-americano designado para cobrir uma anódina luta de boxe de quinta categoria, nos confins do deserto de Sonora, onde várias mulheres vêm sendo estupradas e mortas, há anos, sem que se tenha pista do(s) assassino(s). As histórias vão se desdobrando, entremeadas por estes assassinatos na violenta região fronteiriça entre México e Estados Unidos, onde os corpos vão aparecendo como se fossem dejetos abandonados após o uso, diante da impotência das autoridades locais .






A história que conta parte da vida de Amalfitano, um professor de filosofia de origem chilena, que mora com a filha e tem uma relação absurda com sua ex-mulher tem todos os temperos da tragédia de uma vida cujo único sentido identificável é o de derrota. Porém a conduta bizarra de Amalfitano que entre outras coisas, mantém o livro “Testamento Geométrico” de Rafael Dieste, encontrado por acaso em seus pertences e cuja origem ele desconhecia, pendurado no varal de roupas de seu quintal, torna a história absolutamente original e surpreendente.







Minha experiência com este livro, trouxe-me a sensação de caminhar por um extenso corredor com várias portas que, uma vez abertas, revelavam um universo inteiro naqueles compartimentos recém desvelados e que continham outras portas, que por vezes eram abertas (mas nem sempre) revelando conteúdos ainda mais ricos.
Penso que no pano de fundo da narrativa de Bolaño, revela-se uma crítica contundente sobre o vazio platônico do mundo acadêmico, com seus estudiosos e críticos, sua importância auto-consagrada e fisiologicamente alimentada em detrimento à realidade mesma de seu objeto de estudo, neste caso, o escritor desaparecido. Note-se que este vazio, só é vazio no sentido da real interpretação e compreensão do escritor estudado : um vazio daquelas experiências concretas, mas repleto de projeções dos próprios estudiosos que são incapazes de vive-las por si próprios - é realmente incrível como os humanos são muito mais pródigos em significar a vida e as experiências alheias do que as suas próprias. Beno Von Arcimboldi, que temos o prazer de conhecer no último capítulo do livro, é a antítese do que imaginam seus estudiosos. Sua vida foi tão sobressaltada e sua personalidade é tão idiossincrática, que sua literatura vem à luz como uma emergente de seu próprio ser, de sua própria vida. Muito diferente do que seus "perseguidores acadêmicos" tentavam identificar de sua obra, Arcimboldi, longe de ser um erudito, abandonou cedo os estudos e durante a maior parte do tempo, só possuía um único livro ao qual dedicava todo o seu interesse : um tratado sobre algas ! Arcimboldi, ou Hans Reine (seu nome verdadeiro) é ao longo de sua trajetória de vida, aquilo que podemos chamar de “sobrevivente”. Um pragmático que em certos momentos, lembrou-me a figura de Forrest Gump : determinado a fazer o que tinha que ser feito, sem muitos espaços para ilações filosóficas - uma vida rica de ações e minimalista de estudos. Interessante pensar que,de certa forma, os assassinatos das mulheres que pontuam toda a narrativa, são também uma espécie de "obra" , cujo(s) autor(es) também é (são) absolutamente desconhecido(s) por parte daqueles que o(s) procura(m) e que, no final das contas, os policiais encontram-se tão perdidos quanto os intelectuais que procuram Arcimboldi.
As descrições de 2666 são excelentes e nos remetem para os lugares, fazendo-nos sentir a poeira , o cheiro da gordura dos botecos, as roupas coladas ao corpo, o gelado das cervejas, o impacto da aparência dos cadáveres encontrados, o calor modorrento do deserto e o sentimento de impotência diante das buscas infrutíferas e dos mistérios não revelados.







O final do livro é interessante e não decepciona e como já disse, poderia continuar indefinidamente. Sendo o último romance de Roberto Bolaño, que já estava doente e faleceu pouco depois de entregar os últimos originais, foi planejado por ele para ser dividido em cinco partes a serem lançadas independentemente. Este plano foi elaborado, aparentemente, para que sua família pudesse obter uma renda melhor com os lançamentos em separado. Contudo, o editor, com a concordância da própria família, achou melhor lançá-lo em um único volume. A meu ver e de outros tantos que apreciaram muito este livro, a decisão foi acertadíssima.   



























2666 - ROBERTO BOLAÑO - EDITORA COMPANHIA DAS LETRAS - 852 PÁGINAS





4 comentários:

  1. Costumo pensar que os escritores, são aqueles solitários diferentes, que ao invés de encher a cara de pinga, enche seu cérebro de belas fantasias que servem para aplacar a dor de viver daqueles que apenas aceitam a realidade e se curvam à ela de forma derrotista. Grandes cabeças que nos embalam, são seres especiais que apesar da própria dor,ainda servem de escudo contra o terror da manutenção da vida. Parabéns pelo genial texto!!!!!!!

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    1. Exatamente. O que seria de nós sem os escritores, que além de imaginar mundos, descrever os existentes com lentes de grandes observadores, ainda se dão ao trabalho de dividir isto conosco ? Os bons escritores são na verdade os roteiristas da vida humana - ora contam o passado, ora retratam o presente, mas sempre moldam o futuro até mesmo das pessoas que jamais os leram. Outra coisa que acho fantástica, e por esta razão não vejo sentido em "críticas oficiais", é que cada leitor vê a história de uma maneira, se identifica com parte dela, acrescenta elementos seus e de certa maneira, recria o próprio texto em sua cabeça... Este é o poder da leitura!

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  2. Eliseu! Que bom que gostou do meu modesto blog.. Eu também fiquei muito surpresa com o que encontrei aqui, análises profundas e muito responsáveis, o que é o mais importante. Adorei! Abraços!

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    1. Minha cara Ana ! Seu blog é muito, muito bom e sobretudo inspirador.Agradeço por ter me "visitado" e por ter gostado do que viu. Sou um iniciante, mas estou gostando muito da experiência de dividir algumas de minhas incursões como leitor amante, pois é também uma oportunidade de revisitar estas obras em minha cabeça e atualizar minha visão sobre elas. Vamos em frente ! Acho que isso que estamos fazendo, contribui de alguma maneira para um mundo melhor. Abraços !

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