quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O FIM DA INFÂNCIA - A SUPREMACIA DO POSSÍVEL

“O Ministério da Saúde adverte : Liberdade em excesso pode fazer mal à felicidade”



Sempre apreciei muito o gênero de ficção científica e sobretudo em minha adolescência, dediquei grande parte de minhas leituras a Isaac  Asimov e Artur C. Clarke, os grande pais do gênero e criadores de obras maravilhosas como 2001 – Uma Odisseia no Espaço – de Clarke e Eu, Robô – de Asimov, que embalaram a minha geração e foram magistralmente adaptadas para o cinema. Um pouco mais tarde entra em cena Philip K. Dick com seu excepcional Blade Runner, também adaptado para o cinema,  marcando a transição da ficção científica para o cyberpunk, que associa todas as conquistas da informática e da eletrônica às inquietações  de uma nova geração que tem os mesmos dramas históricos e filosóficos das anteriores. William Gibson, Bruce Sterling e John Shirley são os pais desta nova ficção - Neuromancer, Monalisa Overdrive, Count Zero, etc. Gosto de todos eles mas, em minha opinião, Artur C. Clarke está no topo da pirâmide. Foi por esta razão que me surpreendi quando recentemente tive em minhas mãos  o romance “O Fim da Infância” de sua autoria, pois não o conhecia nem de passagem.



O Fim da Infância foi escrito o início da década de 50 e, exceção feita à tecnologia que evoluiu bastante nesses mais de sessenta anos, permanece bastante atual do ponto de vista do drama humano : a luta pela felicidade suprema em oposição à luta pela liberdade suprema.
Isto me faz pensar sobre a predileção que os humanos têm pelo “supremo”, pelo superlativo absoluto, pois nada parece ser o bastante se não atingir a supremacia, ou pelo menos se encaminhar consistentemente para ela. O grande problema, ou o “problema supremo”, como tanto agrada aos humanos, é que "supremo" é apenas uma meta e é inimiga mortal do equilíbrio e portanto, quanto mais próximo do supremo em algo, mais distante do supremo em outro algo que se lhe opõe . Isto não parece um problema, se os “algos” aos quais me refiro não forem igualmente importantes ou se não forem opositores entre si, o que parece ser justamente  caso da felicidade X liberdade. É claro que as definições de felicidade e liberdade são muito amplas, mas parece haver uma relação intrincada entre estes atributos que se colocam como os maiores anseios da humanidade em todos os tempos. O modelo contemporâneo de felicidade é muito semelhante ao retratado no livro de Clarke : acesso a bens materiais, lazer e prazer imediato.  Exceto se você for um asceta ou um monge budista, na maioria das vezes o aumento do nível de um ocorre em detrimento ao nível do outro : a cada objeto que possuímos, a cada relacionamento conquistado, a cada degrau de status alcançado, um pouco de nossa liberdade se esvai.



No romance de Clarke, a humanidade, às portas do século XXI,  está à beira do caos : miséria, violência, corrupção desmedida estão levando a civilização à autodestruição, quando se descobre que não estamos sozinhos e que existe vida inteligente em outros recônditos do Universo. Neste contexto, a Terra recebe a visita de naves espaciais oriundas de uma civilização extremamente mais avançada, que pairam sobre as principais cidades do planeta, sem contudo fazer contato de imediato. Quando resolvem se comunicar, os extraterrestres revelam seu objetivo de ajudar a civilização humana a resolver todos os  problemas que a estão levando à destruição. Contudo, os visitantes não se mostram fisicamente para os humanos, mantendo contato e emanando decisões através de um único humano escolhido para ser o Secretário e que mantém reuniões periódicas com o Supervisor da Raça Humana em uma das espaçonaves, que jamais aterrissam. O Secretário também não  pode ver o Supervisor, apenas fala com ele numa sala especial, onde recebe instruções e dá informações, que oculta a aparência do alienígena, mas permite uma conversa direta entre ambos, sem a mediação de aparelhos.



O que se segue a esta intervenção são décadas de paz absoluta e prosperidade na Terra, onde as guerras são eliminadas, a miséria e a violência são substituídas por abundância e possibilidades ilimitadas de lazer. Durante este período idílico, os alienígenas são chamados pelos humanos de “Senhores Supremos”, pois possuem uma tecnologia e um poder impensáveis para a humanidade, que apenas pode se beneficiar deles. Desnecessário dizer que, não obstante a Era Dourada em que a humanidade está vivendo, surge um grupo de descontentes com a interferência alienígena, alegando a perda da liberdade em troca de simulacros de prosperidade e felicidade e que na verdade, os humanos haviam se tornado escravos dos alienígenas. Instala-se então uma espécie de Talibã anti-alienígena, que lutará, em vão, para que a Terra saia do jugo dos Senhores Supremos.



É neste ponto que a história de Clarke deixa de ser ficção e passa a ser fiel ao “espírito humano”: O humano é incapaz de permanecer em paz por grandes períodos de tempo, assim como é incapaz de se manter estável , equilibrado e feliz. O humano parece preferir a “liberdade vazia” (aquela que segundo Max Stirmer não dá nada ao homem) do que manter-se ligado indefinidamente a algo que não lhe dê a sensação de estar no controle da situação. Refiro-me à sensação porque é exatamente disto que se trata : apenas uma sensação, uma ilusão de poder controlar seu destino, embora este esteja de fato à mercê de um sem número de variáveis que ele sequer conhece. Mesmo quando ligado a estruturas que o ajudam e protegem (como a família, a sociedade, o trabalho, o direito, etc) o humano se transforma sempre numa espécie de sabotador, porque em algum momento não se sentirá plenamente satisfeito. Para o bem da nossa civilização, na maioria dos casos, a reclamação contumaz e os pequenos desvios de conduta dão conta de manter esta insatisfação constante sob controle, evitando males maiores. Igualmente para o bem da nossa civilização, alguns (e apenas alguns) vão além e acabam por promover uma ruptura, um avanço, nem sempre positivo, mas que servirá de guia para os “reclamões”  virem logo atrás, muitas vezes contra a vontade – parece que é mais ou menos  assim que temos construído nossa evolução.



Voltando à história, Clarke acerta em imaginar uma ilha, chamada de Nova Atena, como uma experiência dentro da trama, que só é possível em grupos de no máximo 100.000 pessoas de cada vez, já apontando para o problema que constitui os grandes ajuntamentos humanos e o caos decorrente na vida das grandes metrópoles.   

O final do livro pode ser interessante para alguns, sobretudo aos adeptos da Nova Era, mas confesso que não o julgo como o ponto forte do livro. Enfim, é um livro de ficção ao bom estilo de Artur C. Clarke e foi muito bom tê-lo encontrado, mesmo numa época de minha vida em que o gênero já não me atrai tanto.






"O FIM DA INFÂNCIA" - ARTUR C. CLARKE - EDITORA ALEPH - 319 PÁGINAS
Destaque para esta edição da Aleph, que traz uma revisão feita por Clarke no final dos anos 80 (o livro foi escrito em 1953) do primeiro capítulo, reescrevendo-o. Contudo foi mantido o texto original, por decisão do próprio autor. 

4 comentários:

  1. Em 2008, escrevi um artigo que denunciava o fim da infância, solitáriamente, fazendo um alerta a esse "pular" de etapa tão importante na vida do humano. Essa denúncia solitária,dizia da nova regra social,a de colocar as crianças disputando com os pais de igual para igual como se já tivessem nascido com o manual na mão. Alertei sobre a sobrevivência do respeito familiar, que servia como um arcabouço na moldagem de um bom carater. Lembro-me perfeitamente , aqui no Brasil, quando isso começou. Parece "um nada" mas os desenhos infantís na TV que perpetuavam os valores sociais da época de 60,castigando sempre os máus e valorizando os bons, gerados majestosamente por Walter Disney, deram lugar aos desenhos japoneses de luta e guerra, onde se iniciou a semente da violência. As crianças da época, começaram a entender que ser máu era muito mais vantajoso para se ganhar uma disputa qualquer.Embora o máu sempre esteve implantado no humano, parecia mais distante,através das guerras.
    Os adultos embarcaram, aceitaram, e hoje temos esse cenário grotesco onde pais matam filhos e vice-versa.Essas inversões chegam tão mansamente, quase imperceptíveis, e quando nos damos conta, já se alastrou como virus perpétuo. O valor do escritor esta não apenas em criar mundos abstratos para o descanso dos neurônios massacrados pelo dia-à-dia que nos permitam sonhar, mas serve também para denunciar o que esta por vir.São pessoas visionárias!!!!
    Magnifico texto esse!
    Parabéns meu amigo

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    1. É verdade e parece que o humano se enrolou de tal maneira, que em busca de um modelo de felicidade (que acaba não o fazendo feliz, porque não é seu, mas implantado pela cultura), abre mão paulatinamente de sua liberdade, sem se dar conta do que isto significará num futuro próximo. Trocou-se uma vida mais simples porém mais rica de significados, por uma corrida alucinada por bens e prazeres materiais que tem se tornado cada vez mais vazia, tornando a vida humana mais e mais descartável.Trocou-se a prisão dos valores morais e religiosos pela prisão do mercado. Talvez a humanidade nunca saiba o real significado de liberdade, que é um conceito criado por nós, difícil de descrever de forma clara, mas facilmente reconhecível quando ela está ausente.

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  2. É claro que ninguém é tão ingênuo de achar que vivemos em um mundo do tipo "Vulcano", onde a racionalização bem orientada em direção à sociedade e à familia,parece perfeita,mas premiar o que é destrutivo e execrar o positivo como babaquices, me parece o fim de uma civilização.

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