segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A NASCENTE (FONTAINHEAD) – PORQUE ALGUNS PODEM E OUTROS NÃO.

“Há milhares de anos, o primeiro homem descobriu como fazer o fogo. Ele provavelmente foi queimado na fogueira que ensinara seus irmãos a acender.” – Ayn Rand






A Nascente é a história de Howard Roark, um arquiteto que desde a faculdade se rebela contra os modelos vigentes na arquitetura clássica e inicia uma trajetória única desafiando a tudo e a todos, não importando o custo a pagar por sua rebeldia. Embora seus projetos sejam valorizados e de certa forma invejados, sua intransigência com o estilo oficial o leva a grandes dificuldades, onde precisa abrir mão de fama e dinheiro, além de conseguir inimigos poderosos. Roark é um homem duro, sem sentimentalismos nem para consigo mesmo nem para com os outros e conduz sua vida amorosa da mesma maneira que conduz sua profissão : sem qualquer tipo de concessão. Ao longo de sua trajetória no romance, seu destino se cruzará com outro “egoísta duro de roer” – Gail Wynand – empresário, milionário e dono de um importante jornal. Wynand construiu seu império sob os mesmo princípios de Roark, e por isso o admira e o apóia.  Os discursos usados por estas duas personagens, resumem a essência do pensamento randiano , como por exemplo - Roark : 

“Nenhum criador foi motivado pelo desejo de servir aos seus irmãos, porque seus irmãos rejeitavam a dádiva que destruía a rotina preguiçosa de suas vidas. A verdade do criador era a sua única motivação. A sua própria verdade e seu próprio esforço para alcançá-la da sua própria maneira. Uma sinfonia, um motor, uma filosofia, um avião ou um prédio – a sua criação era seu objetivo de vida. Não aqueles que ouviam, liam, operavam, acreditavam, pilotavam, ou moravam em sua criação. A criação, não seus usuários. A criação e não o benefício que ela trazia para os outros. A criação que dava forma à sua verdade. Ele colocava sua verdade acima de tudo e a defendia contra todos.”  

E assim vai, ao longo de mais de 800 páginas, numa verdadeira guerra que “o mundo todo” faz contra esses dois, fazendo-os destruir suas próprias obras para não terem que ceder ao “espírito comunitário”.  O discurso de Gail Wynand também impressiona : 

“Se fosse verdade aquela velha lenda sobre aparecer diante de um juiz supremo e relatar seus próprios atos do passado, eu ofereceria, com todo o meu orgulho, não nenhum ato que cometi, mas uma coisa que eu nunca fiz neste mundo : nunca busquei a aprovação alheia. Eu me levantaria e diria : Eu sou Gail Wynand, o homem que cometeu todos os crimes, exceto o principal – o de atribuir futilidade ao maravilhoso fato da existência e buscar justificativa externa. Este é o meu orgulho – que agora, pensando no fim, eu não choro como os homens de minha idade. Mas quais foram a utilidade e o significado ? Eu fui a utilidade e o significado, eu, Gail Wynand. O fato de eu ter existido e agido.”






Há quem diga que Ayn Rand é um boa escritora. Há também aqueles que a definem como filósofa e finalmente os que acham que ela não é nem bem uma coisa e muito menos a outra. De qualquer modo, ainda conta com leitores fiéis e vários institutos que, ou levam seu nome ou utilizam seus ensinamentos como se fossem alicerces que lastreiam qualquer proposta libertária de valorização do indivíduo em detrimento à massa, ao coletivo. Em tempos em que o movimento mundial aponta para o contrário disso, Ayn Rand ainda provoca muitas reflexões naqueles que valorizam o individualismo e o liberalismo. Contudo, existem furos evidentes na lógica de Rand, inclusive corroborados pela sua própria conduta, à frente de seu instituto : ela criou um conceito moral para sua “filosofia” sob o qual todos os seus colaboradores deveriam se submeter... exceto ela ! Ela própria rompeu com sua racionalidade por causa de ciúmes num caso passional com um de seus mais próximos assessores (Nathaniel Branden). Sua lógica ruiu diante daquilo que ela mesma não conseguia controlar e para se justificar, alçou-se à condição de líder suprema e de ser o “maior intelecto do planeta”, para a qual o tal conceito moral, criado por ela mesma, era apenas relativo. Resultado : errou duas vezes e a partir disso, sua credibilidade foi bastante abalada, porém subsistiu até os dias de hoje, como mostram as reedições mais recentes de suas principais obras. De fato, Rand representa a cara dos Estados Unidos nos anos iniciais da guerra fria : Nascida em São Petersburgo como  Alissa Zinovevna Rosenbaum imigrou para os Estados Unidos e representou a dissidência completa do sistema comunista soviético criando as bases de seu “Objetivismo” (termo que ela mesma não gostava), num momento em que os Estados Unidos firmava diante do mundo sua posição absolutamente capitalista e individualista.





Penso que, já de princípio, Rand, embora no sentido inverso, comete o mesmo erro básico que Karl Marx: Propõe um racionalismo absoluto por parte dos humanos, como se isso fosse realmente possível. Enquanto Marx tenta fazer ciência, absolutamente racional, em que o determinismo histórico da sociedade humana caminha inexoravelmente para o comunismo, sendo este o sucessor inequívoco, lógico e natural do esgotamento do capitalismo, Rand usa do mesmo ardil racionalista para defender o oposto : que a história é feita por indivíduos e não pelas massas e que é o gênio individual que move as maiores conquistas da humanidade.
O Objetivismo de Rand tem idéias fortes, cativantes e provocativas, porém a comparação licenciosa que fiz com Marx é apenas no que diz respeito à crença da possibilidade de um ser humano ser absolutamente racional e construir uma sociedade racional a partir de um modelo “correto”, erro aliás muito comum de pensadores de diversos calibres. De resto, ambos se afastam anos luz em talento e obra : Marx produziu uma obra densa, bem estruturada e que é objeto de estudos profundos ainda nos dias de hoje e continuará sendo por muito tempo, independente da qualidade intrínseca que ela comporta. Já quanto a Rand, podemos coletar sua filosofia em um punhado de frases e discursos fortes que foram divulgados basicamente em dois grandes romances : Fontainhead (A Nascente, que ganhou um filme no final dos anos 40) e Atlas Shrugged (Quem é John Galt? ou A Revolta de Atlas) , sendo o restante de sua obra conhecida mais pelos seus asseclas do que pelo grande público. A essência de sua “filosofia” pode ser descrita como :
  •         Metafísica : Realidade Objetiva
  •     Epistemologia :  Razão 
  •     Ética : Autointeresse
  •     Política : Capitalismo 






Na minha opinião, a história real mostra que tanto Rand quanto Marx estão errados pelas mesmas razões – esqueceram de considerar justamente aquilo que torna o humano o que é : suas emoções, motivações inconscientes, necessidade de poder, enfim a imponderabilidade da "alma" humana que acaba por colocar por terra qualquer modelo “correto”, destino histórico e até mesmo o conceito de evolução num sentido sempre positivo. Diga-se de passagem, penso que é um erro grosseiro dar muito peso a qualquer teoria social, antes de se conhecer mais profundamente  o funcionamento da mente humana, o que está de fato acontecendo mais proficuamente apenas nas ultimas duas ou três décadas.






Penso que ainda temos muito o que evoluir em termos de uma boa “Teoria da Mente”, antes de tentarmos acreditar demais nas teorias que esta mente produz e cujo empirismo é questionável. As neurociências estão aí para ajudar, e muito, nesta compreensão, desmistificando o funcionamento do cérebro, encontrando os “fantasmas escondidos por trás da máquina” e  resgatando o papel funcional das “emoções” como recursos da inteligência humana, indispensáveis para sua boa performance.





Praticamente até quase o final do século vinte, as ciências médicas e neurológicas deixaram de lado as emoções humanas, como se, por sua imponderabilidade, não pudessem ser objeto de pesquisa séria, com metodologia científica e resultados mensuráveis e reproduzíveis. O psiquismo e as emoções eram encarados como temáticas para serem abordadas pela psicanálise, filosofia, religião ou qualquer outra via, mas estavam integradas ao conhecimento fisiológico do corpo humano e ao conhecimento neurológico, apenas através das patologias : o diferente era esmiuçado e a partir da diferença, tentava-se estabelecer a topologia estrutural correspondente no cérebro. A Psicologia Experimental fez um excelente trabalho com o único material observável disponível : o comportamento manifesto, o que obviamente não podia dizer nada de concreto sobre as emoções ligadas a estes comportamentos. Atualmente conseguimos ver o cérebro e suas estruturas em pleno funcionamento, a ponto de praticamente se poder dizer o que um indivíduo está sentindo através de exames sofisticados como a ressonância magnética funcional, para citar apenas um exemplo. Pesquisas mais recentes dão conta de um “inconsciente cognitivo”, que coloca aquilo que chamamos de “razão” como apenas uma testemunha de algo que já se processou em nossa mente, sem que acompanhássemos tal processo e desconhecendo a miríade de motivações que nos guiam. Nas próximas duas décadas, provavelmente descobriremos mais sobre nós mesmos do que toda a história da humanidade até aqui. Para quem quiser saber mais sobre isso, recomendo :
































Como já deixei claro, penso que as idéias de Rand são frágeis para serem encaradas como uma filosofia ou que vaticinem a Verdade sobre o ser humano. Contudo, liberal que sou, não descarto a análise de suas idéias como uma reflexão que pode nos fazer dar mais valor ao autodomínio e a nos responsabilizar pela construção de nossos próprios caminhos, prescindindo, na medida do possível, não dos outros ou da civilização, mas do Estado-Pai . O perigo, a meu ver, na abordagem de Rand é que pode ser usada, na pior das hipóteses, como uma ótima justificativa para a canalhice.





"A NASCENTE"  - FONTAINHEAD - AYN RAND - Editora Landscape - 814 págs























4 comentários:

  1. O diferente tem dois preços a pagar à manada, o desprezo ou a perseguição. Ser diferente, pensar diferente, fazer diferente, representa uma ameaça às acomodações sociais previsíveis. O perigo reside em direcionar essas diferenças, tornando o diferente menos racional que os iguais. Assim sendo, não se trata de um direferente, mas de um insano. Meu comentário serve tanto para a autora como para o arquiteto.
    Muito bom seu texto. Amei!

    ResponderExcluir
  2. Em minha opinião, alguns podem e devem ser "diferentes", mas não todos. O problema é que se não houver uma massa unida em torno de uma realidade mais ou menos estável, mesmo que ruim,tudo o que conhecemos como civilização ruirá inexoravelmente. O diferente, que rompe com o tradicional e o comum é necessário para evoluir a sociedade e a massa para consolidar esta evolução. As vezes os diferentes querem converter toda a humanidade às suas idéias e visões de um só golpe, o que os torna insanos. Contudo existem aqueles que professam a diferença e querem ainda estar acima da própria diferença criada... estes se tornam simplesmente uma fraude. Obrigado pelo incentivo !!!

    ResponderExcluir
  3. No passado já fui mais crítico com a chamada massa unida do que sou hoje. Já me assustei com suas retas infinitas e, mais ainda, com suas guinadas coletivas atrás do pássaro líder. Já tive pena, já tive incompreensão, já tive raiva, já tive decepção. Um dia me convenci que essa massa unida não só não pode ser dissolvida como também é necessária. Sem seus bandos e suas revoadas, os próprios pássaros deixam de existir em sua essência, deixam de voar de forma organizada e coordenada. Deixam de se proteger de seus predadores. Deixam de economizar energia no vôo. Deixam de chegar a seu destino, seja ele qual for. Convenci-me também que não existe somente um pássaro líder no bando, na verdade o líder pode nem mesmo ser um pássaro. Pode ser somente o vento, pode ser somente o instinto, pode ser somente o medo. E não há nada de errado nisso. Além disso, me convenci também que o vôo solo é sim seguro, mesmo que assustador. Já vi sim o gavião atacar o pardal solitário, mas também já vi o pardal atacar o gavião, com tal bravura que se tornou uma harpia. A humanidade precisa de harpias, precisa de pardais solitários, mas também precisa de bandos de pardais para tornar as migrações em massa mais eficientes. Contudo, como bem disse o Eliseu, entre os alados existe também Ícaro que, seja pela inexperiência, seja pelo encantamento do sol, seja por arrogância, não estava ainda preparado para voar, muito menos pra liderar seu bando. A esses, sempre estará reservada a queda. Que os Deuses do Olimpo nos protejam... Parabéns Eliseu pelo blog, que todos os pássaros te enxerguem para chegarem logo ao verão.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Penso que passamos pelos mesmos caminhos e pudemos enxergar coisas muito semelhantes. Obrigado pela força Paulo e por seu comentário brilhante !

      Excluir